Miguel
Machado,
Operacional, defesa, forças amadas e de segurança 30 de Setembro de 2018
Os recentes
acontecimentos relacionados com o desaparecimento e a posterior recuperação do
material de guerra dos paióis de Tancos, com alguma demagogia e oportuno
aproveitamento têm servido de justificação para aqueles que de há muito
pretendem a extinção da Polícia Judiciária Militar (PJM) e a passagem das suas
atribuições e competências para a Polícia Judiciária (civil).
Intróito
Ora recordando apenas
dois casos conhecidos ocorridos não há muito tempo, o do presidente do
Instituto dos Registos e Notariado e o do director nacional do Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras que foram presos e neste momento até já julgados e
que se saiba, ninguém por esse facto veio pedir a extinção de nenhum daqueles
organismos ou a passagem das suas competências para outras entidades.
Em inúmeras análises e
debates televisivos e em diversos comentários na imprensa em geral vêm surgindo
as dúvidas sobre a necessidade e até, pasme-se, a legalidade da existência da
PJM.
É precisamente sobre a
sua justificação que este pequeno texto versa, sem nada referir sobre as
ocorrências de Tancos, responsabilidades ou culpabilidade de quem quer que
seja, não deixando no entanto de apelar ao muito propalado princípio da
presunção da inocência que para alguns casos é profusamente enunciado, mas
noutros reiteradamente esquecido.
Polícia Judiciária
Militar
A Polícia Judiciária
Militar (PJM), a par da existência de Juízes Militares em todas as instâncias
criminais e de Assessores Militares junto do Ministério Público (MP), com o
Código de Justiça Militar (CJM), este enquanto fonte substantiva do direito
militar, dão corpo ao Sistema de Justiça Militar constitucionalmente
consagrado.
A Polícia Judiciária
Militar é um órgão de polícia criminal (OPC) com competência específica para a
investigação dos crimes estritamente militares.
Tem ainda competência
reservada para a investigação de crimes cometidos no interior de unidades,
estabelecimentos e órgãos militares.
Os demais órgãos de
polícia criminal, devem comunicar de imediato à PJM os factos de que tenham
conhecimento relativos à preparação e execução de crimes da sua competência,
apenas podendo praticar, até à sua intervenção, os actos cautelares e urgentes
para obstar à sua consumação e assegurar os meios de prova.
Contudo, tal não
prejudica a competência conferida à Guarda Nacional Republicana (GNR) pela Lei
de Organização da Investigação Criminal (LOIC) ou pela respectiva Lei Orgânica
para a investigação de crimes comuns cometidos no interior dos seus estabelecimentos,
unidades e órgãos.
Os efectivos militares
necessários ao funcionamento da PJM são assegurados em termos a definir por
despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da defesa nacional e
da administração interna, respectivamente para os militares das Forças Armadas
ou da Guarda Nacional Republicana.
Podem ser nomeados para
o desempenho dos cargos ou exercício de funções a que se refere o número
anterior, militares dos quadros permanentes nas situações de activo ou de
reserva na efectividade de serviço e militares em regime de contrato e de
voluntariado.
A investigação dos
crimes militares sempre coube a investigadores subordinados ao estatuto da
condição militar, podendo recair sobre militares das FFAA ou da GNR, embora na
dependência funcional do Ministério Público (MP), como não podia deixar de ser,
porque pela natureza dos crimes e pelos bens jurídicos tutelados, a
investigação dos mesmos deve ser da responsabilidade de um órgão que
percepcione facilmente os interesses jurídicos em causa (interesses militares
da defesa nacional).
É também esta a razão da
existência de juízes militares nos tribunais que julgam os crimes de natureza
militar, de assessores militares junto dos magistrados do MP na fase de
inquérito e de uma secção especializada para a investigação deste tipo de
crimes nos Departamentos de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa e do
Porto.
Relembre-se o elenco dos
crimes estritamente militares previstos no CJM para melhor se compreender a sua
especificidade.
Crimes contra a
independência e a integridade nacionais (art.º 25 a 37)
(Exemplos:
Traição à Pátria;
Infidelidade no serviço militar (corrupção).
Crimes contra os
direitos das pessoas (art.º 38 a 56)
(Exemplos: Incitamento à
guerra; Crimes de guerra contra pessoas).
Crimes contra a missão
das Forças Armadas (art.º 57 a 65)
(Exemplos: Capitulação
injustificada; Actos de cobardia).
Crimes contra a
segurança das Forças Armadas (art.º 66 a 71)
(Exemplos: Abandono de
posto; Incumprimento dos deveres de serviço; Entrada ou permanência ilegítimas
em instalações militares).
Crimes contra a
capacidade militar e a defesa nacional (art.º 72 a 84)
(Exemplos: Deserção;
Extravio, Furto e Roubo de material de guerra).
Crimes contra a
autoridade (art.º 85 a 100)
(Exemplos:
Insubordinação; Abuso de autoridade).
Crimes contra o dever
militar (art.º 101 a 104)
(Exemplos: Ultraje à
Bandeira Nacional; Evasão militar).
Crimes contra o dever
marítimo (art.º 105 a 106)
(Exemplos: Perda ou
Abandono de navio).
Os próprios crimes do
foro comum cometidos no interior de instalações militares têm uma possibilidade
de dano que extravasa o núcleo do bem jurídico que tutelam porque, em razão do
lugar onde são cometidos estão conexionados com a vivência militar afectando
valores de confiança e de disciplina interna das Forças Armadas e de outras
forças militares.
A investigação dos
mesmos por outro OPC que não o militar colidiria com questões operacionais e de
segurança e seria prejudicial à coesão e à confiança da Instituição Militar.
A acrescer a estas
razões, existe uma outra de natureza excepcional que se prende com a situação
de guerra em que são criados tribunais militares que podem chegar a ser
exclusivamente constituídos por juízes militares e em que o MP pode ser
substituído por um oficial das Forças Armadas, onde seria no mínimo estranho
que o OPC encarregue da investigação criminal fosse de natureza civil.
Na mesma linha de
raciocínio se afigura completamente descabido que um crime cometido num
qualquer TO no estrangeiro no seio das Forças Nacionais Destacadas (FND) viesse
a ser investigado por um OPC que não tivesse a natureza militar.
Conclusão
A argumentação da
duplicação de entidades de investigação criminal (PJM e PJ) não colhe, na
medida em que o âmbito de intervenção de cada um destes OPC (quer em termos
materiais – crimes estritamente militares; quer em termos espaciais – crimes
cometidos no interior de instalações militares) não é o mesmo, para além do
facto do nosso sistema de investigação criminal ter optado por um modelo de
pluralidade de OPC.
Todavia para que o
modelo funcione sem atropelos nem concorrências perniciosas é necessário que as
atribuições e competências de cada um sejam respeitadas, e mesmo naqueles casos
fronteira de possível indefinição, caberá ao titular da acção penal, o MP, a
definição clara de qual o OPC indicado para a investigação.
A este propósito uma
pequena nota, é que de acordo com o artigo 113.º do CJM, não pode haver conexão
de processos de natureza estritamente militar e outros.
Mas mesmo que por
absurdo se pretendesse a extinção da PJM, o mesmo não significaria a
transferência das suas competências para uma estrutura civil dada a total
contradição que essa solução representaria uma vez que no nosso país é bem
clara a opção por um modelo dual, onde para além de polícias civis, permanece
uma força de natureza militar, a GNR que por sinal é um OPC com mais de 1 000
militares qualificados com o curso de investigação criminal que actualmente
detém competência para investigar crimes cometidos no interior dos seus
quartéis.
Se de acordo com o
estatuto da PJM os militares da GNR, a par dos das FFAA, podem integrar aquele
OPC, a eventual extinção da PJM implicaria que a GNR passaria a ser o único OPC
de natureza militar em que os seus elementos possuem o estatuto da condição
militar, não se compreenderia a opção pela PJ (civil) para prosseguir as
atribuições e competências da PJM no que respeita à investigação de crimes
estritamente militares e dos crimes comuns praticados no seio de instalações
militares.
Acresce que com recurso
ao direito comparado, em todos os países do Sul da Europa e outros onde existem
«gendarmeries» (Espanha – G.Civil; França – Gendarmerie Nationale;
Itália – Carbinieri), são estas que desempenham as funções de PJM, ao contrário
do que sucede na generalidade dos países anglo-saxónicos, em que aquela missão
está atribuída às Polícias Militares.
O que não é usual é
encontrarmos solução semelhante à ora preconizada, com a atribuição de funções
de investigação de crimes militares a uma polícia civil.
Em síntese, a eventual
extinção da PJM e a atribuição das suas competências a uma Polícia civil,
contraria totalmente a opção por um sistema dual, com uma polícia civil e uma
de natureza militar, põe em causa a coesão e a disciplina das Forças Armadas e
de outras forças militares e contraria o próprio Sistema de Justiça Militar.
Legislação de suporte
Lei n.º 100/2003, de 15
de Novembro; Lei n.º 63/2007, de 6 de Novembro; Lei n.º 49/2008, de 27 de
Agosto; Lei n.º 97-A/2009, de 3 de Setembro; DL n.º 200/2001, de 13 de Julho;
DL n.º 9/2012, de 18 de Janeiro.
Lisboa, 30 de Setembro
de 2018
Carlos Manuel Gervásio
Branco (coronel na reserva)