Vasco Pulido Valente é um intelectual de pensamento
anarco-liberal com momentos de lucidez. Nesses momentos de lucidez costuma
escrever certas coisas certas que poucos têm a coragem de escrever, o que é
louvável.
No lote de meia-dúzia de intelectuais indígenas (como ele chama às coisas e
pessoas portuguesas) a que pertence, ele é, muito claramente, o único que pontualmente
se aproveita. Por isso mesmo se sente isolado desses convivas.
Por vezes, Vasco Pulido Valente bate ao lado, como
acontece nesta mesma entrevista, onde demonstra desconhecer a história
económica de Portugal, limitando-se a reproduzir a versão de Cunhal no Rumo à Vitória, que procura escamotear
o grande desenvolvimento industrial de Portugal nos anos 50 e 60. E para saber
que as coisas não são como Cunhal as descreveu nem é preciso ter formação
económica: basta olhar para meia-dúzia de estatísticas que tudo desmentem.
Quanto aos outros intelectuais desse lote, coitados...
de nós, que temos de aturá-los.
Vasco Pulido Valente concedeu uma entrevista a Ana Sá
Lopes, publicada no jornal i (25.4.2014).
Vejamos alguns extratos.
Heduíno Gomes
(...)
Estava a dizer que a sede da PIDE devia ter
sido um ponto estratégico se aquilo tivesse sido conduzido por alguém com
alguma cabeça. Mas o 25 de Abril foi um sucesso. Acha mesmo que não tiveram
cabeça?
Aquilo não tinha uma cabeça política e acabou
por se reduzir ao plano operacional do Otelo, que também não tinha uma cabeça
política. Basta ler a entrevista do Vasco Lourenço ao "Expresso", no
sábado. Essas pessoas não sabiam o que iam fazer depois, o plano não preparava
o futuro, como é evidente.
Entregaram o poder à Junta de Salvação
Nacional...
O poder ficou divididíssimo, toda a gente
tinha poder, ninguém tinha poder. Se entregaram o poder a alguém foi a
conselheiros que se apresentaram, a maior parte do PCP e outros tantos
indivíduos de extrema-esquerda, as brigadas revolucionárias.
Mas Spínola é feito Presidente da
República...
Não se percebe muito bem por quem é feito,
de que maneira é feito. Ainda não se percebeu muito bem. Há uma grande
pulverização do poder, em que a grande força verdadeiramente organizada e
disciplinada se conseguiu impor.
Estamos a falar do PCP. Vasco Pulido
Valente vai esperar Álvaro Cunhal ao aeroporto logo a seguir. Porque decidiu
fazer isso?
Por duas razões. Eu tinha combinado com a
Maria Filomena Mónica, com quem eu vivia na altura, que se ela fosse esperar o
Soares eu ia esperar o Cunhal. E os meus pais, que conheciam o dito Cunhal da
juventude, embora nenhum deles já fosse PC nessa altura, foram-no esperar e
disseram que gostariam muito que eu fosse também. E eu fui ver o Cunhal. E foi
a primeira vez que eu tive uma "intimation" do que se ia seguir.
Parte daquilo foi uma cópia da chegada do Lenine à estação da Finlândia.
Mas o PCP tem outra teoria sobre isso: a
chaimite estava lá porque o Jaime Neves a mandou.
Diz o PCP. E a menina que estava em cima da
chaimite e lhe deu as flores também foi enviada pelo Jaime Neves? E o discurso
em si? Tinha sido tudo planeado.
(...)
Quando é que se lembra de começar a ter
consciência política? Os seus pais eram politizados...
Os meus pais saíram do PCP quando foram as
grandes purgas na Hungria, em que os soviéticos mataram as grandes elites
nacionalistas, nos anos 50. Cortaram com o partido, mas continuaram a
colaborar, porque eram amigos das pessoas, tinham contactos. (...)
(...)
Mas houve uma crise em 2008 que fez
rebentar as estruturas da Europa.
O problema da Europa é que não tem ninguém
que se responsabilize pela dívida globalmente. E a Alemanha não se quer
responsabilizar pela dívida, nem a Holanda, nem a Finlândia. Daí o Tratado
Orçamental. Isto é simplicíssimo. E toda a esquerda anda por aí a dizer que há
outras maneiras. Não há outras maneiras! O documento dos 70 é uma bancarrota em
prestações que a Europa não vai aprovar.
Há muita gente a assinar o documento que
nem sequer é de esquerda...
Não sei se são de esquerda ou se não são. A
estupidez humana é infinita e a estupidez portuguesa ainda consegue ser maior.
Aquilo é uma bancarrota em prestações! E o capitão Vasco Lourenço e o Dr. Mário
Soares incitam à insurreição violenta sem o governo abrir a boca! E não é só o
governo, ninguém abre a boca! Toda a gente gosta muito da liberdade e da
democracia, mas depois aparecem uns senhores... E o Dr. Soares sabe
perfeitamente o que está a dizer!
O Dr. Soares diz que é contra a violência e
está a alertar para os riscos de isto acabar mal.
Isso é uma incitação à violência por parte
de um ex-Presidente da República! E o Dr. Soares sabe muito bem o que está a
dizer! O Vasco Lourenço sabe menos o que está a dizer... Não passou pela cabeça
de nenhum destes senhores, nem dos que os acompanham, o que seria o dia
seguinte a uma revolução dessas quando fosse lá o chefe da revolução -- se
houvesse chefe, que não houve no 25 de Abril -- pedir dinheiro emprestado!
Mas não acha que na sequência da crise de
2008, os princípios de coesão da União Europeia foram ao ar? Acha que essa
Europa ainda existe?
Acho que nunca existiu. A partir de 1989
deixou de existir e antes disso não existia muito. Mas nós recebemos uma vasta
solidariedade da Europa, os chamados fundos de coesão. Foi a nossa incapacidade
de administrar esses fundos e a nossa desorganização como sociedade política
que nos levou a este estado. Se tivéssemos administrado tudo bem e tivéssemos
tido políticas inteligentes podíamos estar mal, mas não no estado em que
estamos.
(...)
Mas qual é a saída? A dívida sobe cada vez
mais...
Eu não digo que o governo esteja a fazer as
coisas da melhor maneira, do meu ponto de vista não está. Mas daí a dizer-se
"não vamos pagar a dívida", "vamos sair do euro", vamos
declarar uma bancarrota a prestações, vai um abismo. Algumas dessas soluções
conduzir-nos-iam à mais horrível miséria do mundo, sabe-se lá com que
consequências políticas, como a saída do euro. Outras são já uma proposta de
bancarrota. Qualquer país do mundo precisa de crédito internacional. Se nós não
conseguirmos que os países nos emprestem dinheiro estamos perdidos.
(...)
Vamos para a política. Nunca os portugueses
mostraram tanta aversão aos partidos, que são as entidades fundadoras da
democracia.
(...) As pessoas não têm confiança nenhuma
naqueles partidos, acham-nos uns grupos de oportunistas, de corruptos, de
mentirosos, que não lhes podem trazer nada de bem. O grave disto é que a onda
de opinião contra os partidos pode tornar-se dominante. Há aí uma oposição
difusa ao regime que ainda não encontrou um chefe. E o governo é composto por
uma gentezinha autoritária, muito pouco democrática no geral. Considera-se
injustamente o Paulo Portas o mais autoritário, mas não é. Apesar de tudo, é o
mais tolerante. Eles estão a cumprir ordens e querem cumprir bem as ordens. São
míopes politicamente. Há uma grande falta de inteligência política neste
governo. Primeiro, não percebem a sociedade portuguesa e estão a atacar nos
sítios errados. Passos não tem grande inteligência política.
Está a falar dos pensionistas e dos
funcionários públicos?
Tendo em conta que representam 80% da
despesa, tinham de a diminuir, mas podiam tê-la diminuído de outra maneira,
fazendo a célebre reforma do Estado, que nunca tiveram coragem de fazer. Como
nunca tiveram coragem de fazer a reforma administrativa. (...)
(...)
[Mário Soares] É um dos seus velhos amigos.
Mas o que eu acho que ele está a fazer é
imperdoável! Ele está a trair todos os princípios que tinha e que fizeram dele
quem é e está a associar-se com a gente que ele justamente execrava. Está a ver
o Dr. Soares em 1980 à mesma mesa com Vasco Lourenço a dizer aquelas coisas
sobre o MFA? Quando eles andavam a dizer por toda a parte que o iam matar?
Os capitães de Abril diziam que iam matar
Mário Soares?
Os capitães de Abril nunca nenhum disse.
Mas os fanáticos do MFA no PS vários me disseram. "Diz ao teu amigo Soares
que ainda acaba morto." As pessoas diziam isto nas conversas. E agora ele
vai dar-lhes pancadinhas nas costas, a dizer que temos uma dívida de gratidão
para com os capitães de Abril!
E não temos, Vasco? Não temos uma dívida de
gratidão? Foram os homens que fizeram o golpe de Estado!
Leia a entrevista de Vasco Lourenço ao
"Expresso". Ele reconhece que a maioria estava lá por razões
corporativas.
Mas devemos alguma coisa àqueles homens,
foram eles que saíram para a rua.
Não devemos nada. Zero.
Temos hoje democracia porque eles
derrubaram o regime através de um golpe de Estado e arriscaram a vida. O Vasco
reduz aquilo a uma reivindicação corporativa. Não é o caso de Melo Antunes.
Os tipos só sabiam vagamente o que estavam
a fazer. O Melo Antunes era um imbecil.
(...)
Mas porque diz que Melo Antunes era um
imbecil?
Esse achava-se um inspirado, que era a alma
daquilo. Ele não percebia a sociedade em que estava a viver.
Mas é ele e o Documento dos Nove que abrem
caminho ao 25 de Novembro.
Mas isso tem uma explicação muito clara:
ele queria mandar, não queria que mandasse o PC. Ele iria transformar Portugal
numa coisa nunca vista.
É a primeira pessoa que não me diz que Melo
Antunes era o melhor de todos.
Era o pior deles todos!
Pior que Otelo?
Otelo é um inimputável simpatiquíssimo.
(...)