João José Brandão Ferreira Oficial Piloto Aviador
Assinalou-se (!) no passado mês de Setembro o aniversário em título,
aprovado em 1999, mas apenas efectivo em 2004, devido a um período de transição
de quatro anos.
Na sequência de tão nefasta quanto lamentável decisão – que configurou
um verdadeiro crime de lesa-Pátria – alguns órgãos de comunicação social
abriram mão de uns minutos (poucos) das catadupas de tempo, imagem e som que
dedicam às mais importantes novelas do burgo, a saber, o futebol, a chicana
política e as aberrações sexo/sociais das estrelas mundanas em moda, para se
dedicarem à efeméride.
Do que foi dito e entrevistado, realço as declarações do actual CEMGFA, general
Pina Monteiro; do presidente do grupo parlamentar de Defesa, o deputado (PSD)
Matos Correia; o general Valença Pinto, ex-CEME e CEMGFA e do general Loureiro
dos Santos, ex-MDN, ex-CEMGFA e ex-CEME.
É muito curioso, ilustrativo e sintomático, analisar o que disseram. Mas
antes de o fazermos vamos tentar situar a questão e as suas envolventes.
Basicamente existem três tipos de serviço militar: voluntariado,
conscrição e misto. Todos eles têm vantagens, inconvenientes e consequências,
que não vamos escavar em detalhe.
Estas situações aplicam-se, por norma, em tempo de paz, crise ou
conflitos localizados, pois para uma situação de guerra a sério, toda a
população é imediatamente mobilizada, quer queira ou não...
Nada disto tem a ver, também, com a formação dos
quadros permanentes.
Como o próprio nome indica,
no sistema voluntário, alistam-se nas Forças Armadas (FA) apenas os cidadãos
que o desejem e sejam aceites no processo de recrutamento e selecção.
É uma situação idêntica às de outros empregos no
mercado de trabalho.
Os campeões deste modelo
são os ingleses.
São-no, porém, não só pelo seu pragmatismo mas, sobretudo, por o seu
país estar encerrado numa ilha protegida das invasões pela Royal Navy e, desde
1918, também pela Royal Air Force.
O SMO como o conhecemos hoje, passou a estar em uso desde a Revolução
Francesa e à medida que o nacionalismo se desenvolveu durante todo o século
XIX, e a guerra passou cada vez mais a afectar a totalidade da geografia e dos
recursos das nações ou impérios, envolvidos.
Até que, já no século XX se chegou à «guerra total».
Este modelo foi sendo progressivamente adoptado pela grande maioria dos
países existentes e dos que foram surgindo.
Normalmente, por condicionalismos vários, nem sempre se justificava, ou
era possível, fazer passar pelas fileiras a totalidade dos jovens, pelo que se
optava por mobilizar apenas parte do contingente e, ou, por razões de evolução
tecnológica e necessidades da táctica e da técnica, passou a optar-se por
contractos mais longos a pessoal que se voluntariava para isso. Prática, essa,
mais espalhada nas forças aéreas e navais.
Surgia assim o serviço militar «misto».
De entre este último, ainda se pode individualizar a organização suíça,
única no mundo, a par com Israel – que vive em situação de «estado guarnição»,
por viver em guerra permanente desde a sua fundação, em 1948 – que combina uma
judiciosa organização do terreno com uma organização do território e dos
recursos, o que combinado com um sistema de treino e mobilização aturado, de
toda a população até uma determinada idade, permite uma optimização de meios e
um avançado grau de dissuasão.
Não escondo ser este último sistema, aquele que penso ser o que melhor
serviria os interesses da Nação e do Estado português.
Ora em Portugal existe ampla experiência e tradição sobre todo este
assunto embora, por falta de doutrina, exiguidade de meios, ignorância
militante e da maioria da população ser relapsa à disciplina e à organização,
nunca ter sido pacífica a maneira de montarmos um sistema que funcionasse bem e
evoluísse com o tempo.
Desde a fundação da nacionalidade que se reconheceu a necessidade e a
importância da defesa do Reino e foi ganhando foros de matriz nacional a
organização das milícias dos concelhos, que se podem considerar os verdadeiros
antepassados, entre nós, do SMO.
A falta de riqueza, de armas, de cavalos, a
exiguidade populacional, a falta de gente de guerra treinada e a necessidade de
braços para a agricultura e, depois, para a Marinha e Ultramar, obrigou a que,
na maioria das épocas, toda a organização militar do Reino vivesse de
solavancos, descaso e pobreza.
Quando o país corria perigo
lá se ia, à pressa, de qualquer maneira, tentar remediar as inexistências com
os graves prejuízos daí resultantes.1
Já estamos, novamente, em condições de passar por
mais um período destes...
O SMO, contudo, só
verdadeiramente foi implantado entre nós após a reforma do Exército de 1911,
mas só passou a funcionar devidamente após a reforma de 1937, devido aos
períodos conturbadíssimos da I República e a agitação que se seguiu ao 28 de
Maio, crise financeira, etc..
O SMO atingiu o seu pico de excelência durante as últimas campanhas
ultramarinas, entre 1954 e 1974.
O «PREC, a diabolização estúpida do passado recente e até do passado
remoto», não ajudaram nada a credibilizar a instituição militar e a manutenção
do SMO.
Muitas vezes indo contratar oficiais, mercenários e
chefes estrangeiros...
Seguiu-se uma furiosa
campanha antimilitar (que não antimilitarista) promovida por grande parte dos partidos
políticos, OCS e intelectualidade vária, que piorou a situação.
Finalmente o muro de Berlim caíu e o Ocidente (e não só) começou a
enviar os soldados para casa e uma onda de parvoíce ilusória varreu parte da humanidade,
julgando que as guerras eram coisa do passado.
Um escritor de olhos em bico chegou, inclusive, a
decretar o «Fim da História»!
Salvou-se a NATO com a
crise nos Balcãs e, a pouco e pouco, continuaram a rebentar conflitos e guerras
localizadas, por todo o globo.
Os principais países e alianças organizaram-se de outro modo para
poderem intervir onde «fosse necessário»; inventaram-se as novas missões de Paz,
humanitárias e de imposição de paz; tenta-se colocar tudo debaixo do manto
diáfano da ONU (o que nem sempre acontece), mas para isso necessitava-se de uma
disponibilidade de tropas que nem todos dispunham ou pretendiam participar e
cuja actuação estava longe de ser consensual nas opiniões públicas.
Tentou resolver-se o problema com voluntários e ... pagando.
Mesmo assim, hoje em dia, já não chegam e, por isso, já se contratam
empresas de segurança para fazerem determinadas operações.
Estamos a voltar ao mercenarismo.
Tudo isto resulta das profundadas alterações sociológicas operadas, no
Ocidente, a partir dos movimentos pacifistas; hippy; libertação da mulher;
feminismo; rock da pesada; drogas; homossexualismo; destruição dos valores
tradicionais; relativismo moral, etc., que tiveram no «Maio de 1968», em França
o «epicentro da revolução».
A lista é longa e não é grande coisa.
O cúmulo aconteceu quando se quis inventar guerras onde não morresse
ninguém – do nosso lado, obviamente...
Em Portugal a Constituição de 1976 impôs a ditadura dos «direitos» face
aos «deveres», e a luta política/partidária afundava-se na demagogia das
promessas – que ninguém cumpria, e também nunca teve consequências – e a
sociedade mergulhou no facilitismo e no consumismo.
Ora a vida castrense, com os seus rituais, as suas tradições, as suas
regras, as suas exigências, os seus valores, etc., estava ao arrepio de tudo
isto.
Passou a ser tida como um anacronismo; uma relíquia do passado (já com
teias de aranha); uma maçada.
Em cima disto, custava dinheiro, esse novo e luminoso Deus colocado
pelos novos sacerdotes nos altares da urbe.
As juventudes partidárias (com excepção da Juventude Comunista) pegaram
no assunto e martelaram-no.
Lembro o comportamento da JSD e da JS, e mesmo a JC, como as mais
aguerridas em acometer a cidadela, onde pontuavam os futuros ilustres primeiros-ministros
Sócrates e Passos Coelho.
Eu penava, nessa época, pelo MDN.
E foi justamente um ministro da defesa, que ficou para a História, como
o «nosso cabo» que, aproveitando-se de um estudo académico, feito no então
IAEM, entregue por um dos seus colaboradores (na altura major) – com muitas
responsabilidades em tudo o que se passou – assucatou-o, originando essa pérola
da civilização «tuga» que resultou na redução do SMO para 4 (quatro!) meses...2
Ora o que se decidiu (que ninguém me tira da cabeça que foi feito de
propósito, pois foi demasiado estúpido para ser só burrice), representou um
aborto induzido, cujo passo seguinte seria, fatalmente, o fim do SMO, por ser «insustentável»
manter os quatro meses...
Consta que quando soube que já não tinha que ir à tropa, o jovem Cavaco
filho, agarrou-se ao pescoço do já entrado Cavaco pai, e estremeceu-o de
agradecimentos.
Assim se faz a História.
*****
Regressemos aos depoimentos.
Comecemos pelo primeiro, do general CEMGFA, cuja frase mais importante é
a de que «o regime voluntário se revelou muito adequado, para responder aos
actuais tipos de conflitos e necessidades».
É uma opinião respeitável.
A única coisa que registamos é termos há muito constatado que as suas
opiniões, certamente por coincidência, batem sempre certas com o politicamente
correcto e com as de quem está no Poder.
O que também não é destituído de lógica!
Pergunto, no entanto, porque é que defende a adequação. Será que é para
não haver problemas nas unidades? Será que é porque uma grande parte do
contingente, poder não concordar com as missões no exterior por estas nem
sempre estarem em consonância com o estudo entregue tinha de facto cabeça,
tronco e membros e tinha até, pernas para andar. Em síntese: todos os jovens
vinham à tropa e faziam quatro meses de recruta; quem quisesse ficaria como
contratado e iria preencher o principal do sistema de forças. Os restantes
passavam para a reserva territorial e manteriam um treino anual, salvo erro,
até aos 35 anos. Era uma espécie de sistema à suíça, incipiente. Ora o «nosso
cabo» pegou nisto e aproveitou apenas o que dizia respeito aos quatro meses...
Estávamos em 1991.
O interesse nacional? Se assim for isso significa que não haverá
sintonia entre o Estado e a Nação?
Diga-me o «duplo voluntariado» é adequado?
Isto é, os mancebos vêm voluntários para a tropa mas depois, quando é
preciso enviá-los para qualquer lado, é preciso perguntar-lhes novamente? E
podem desistir quando querem durante o processo, como eu já vi acontecer quando
era suposto transportar 190 homens de avião, para algures nos Balcãs e só levei
189?
E porque não há o 3.º voluntariado? Ou seja, quando é preciso enviar uma
patrulha para uma missão qualquer, porque não se pedem voluntários?
É adequado? Já pensou o Senhor general como vai conseguir recompletar
uma subunidade que tenha umas dezenas de baixas, com tudo na retaguarda preso
por arames?
E se nessa altura já ninguém se voluntariar? Manda (se conseguir passar
guia de marcha a alguém, no estado em que as coisas estão...) um pelotão só de
sargentos do QP, pois esses podem ser obrigados a ir, mesmo que não se
voluntariem?
E já reparou que o actual sistema causou uma brecha insanável na coesão
das tropas porque os estatutos entre o QP e os contratados e voluntários são
diferentes?
Finalmente fará o favor de me explicar, o que
distingue um Exército a funcionar nestes moldes, de uma qualquer empresa de
segurança privada?
*****
Segue-se as declarações do deputado Matos Correia, que são no mínimo
surpreendentes.
Mostra-se preocupado com «o afastamento cívico dos jovens em relação às
FA», e quer «debater» o assunto, mas não defende o regresso ao SMO.
É preciso ter lata.
Então estava à espera que acontecesse o quê, depois de todas as
barbaridades que os partidos políticos – com o PSD à frente – disseram e
fizeram para com a instituição militar, faz décadas?
Lembro que o seu partido até se absteve na votação final, na AR, aquando
da votação do diploma que acabava com o SMO, em 1/7/99, e digo-lhe porquê: por
não concordarem que a versão final do documento previsse um período de
transição de quatro anos, queriam que acabasse no próprio dia!3
O então deputado Pedro Passos Coelho classificou como «um logro» tal
medida, certamente por ter sido proposta pelo PS...
Está o senhor deputado preocupado que as pessoas questionem sobre a
existência das FA?
E, ainda, que o dia da Defesa Nacional «é pouco». V. Exa só pode estar a
mangar com o povo!4
Então já não vamos em mais de 30 anos em que a política com («p»
minúsculo) e seus agentes principais, tudo têm feito – sem nada assumirem –
para destruir e reduzir a cinzas a mais importante instituição do País e o
senhor vem agora com lágrimas de crocodilo chorar sobre o leite derramado?
E chega a dizer que «um estado soberano não pode abdicar desse
instrumento de soberania»? Soberania?
O Senhor fala em soberania? Qual? Aquela que passaram para Bruxelas? A
que é exercida em Berlim? A que «delegaram na Troika»? À que se curvam
diariamente perante os «mercados»?
Ou, até, e para cúmulo aquela representada pela tristíssima cena
zoológica protagonizada pelo inenarrável MDN (e também o MNE e Tribunal),
relativamente aos quatro espanhóis que «invadiram» as Ilhas Selvagens o que
depois obrigou a Marinha portuguesa a passeá-los até ao Funchal, alimentá-los,
aboletá-los, etc., saindo condenados a pagar uma multa de quatro euros, pelo
que fizeram?
Se isto não é um Estado das bananas, da República dos sem vergonha, é o
quê?
E não vale a pena estar a perder mais tempo com o resto da conversa
redonda (de chacha) em que se enredou.
*****
O general Valença Pinto foi mais lacónico: «foi uma revolução
bem-sucedida, resolveu o problema da impreparação do contingente, devido ao
serviço de 4 meses».
Que revolução? Qual era o problema?
A FA e a Marinha já praticavam o processo do
voluntariado em larga escala; o Exército apenas tinha que copiar o modelo e
tinha quatro anos para o fazer...
Já expliquei, a montante, a
questão dos 4 meses. Foi uma demagogia execrável que as chefias militares
engoliram, como têm engolido quase tudo, refugiando-se atrás de uma postura
institucional.
Se revolução houve, ela operou-se nas cabecinhas,
pois tiveram que se adaptar a uma exiguidade de meios humanos e à falta de «mão-de-obra
barata»; tiveram que passar a pedir mais recursos para colmatar aqueles que o
SMO fazia e que ia desde servir nos bares das unidades até pintar paredes.
Até deixou de ser
obrigatório fazer o recenseamento aos 18 anos... Em 2013 o MDN suspendeu o Dia
da Defesa Nacional, para «reformular o modelo e reduzir custos». Mas a
verdadeira razão esteve na morte de uma moça num infeliz acidente.
Revolução seria organizar as coisas de modo a ter os militares permanentemente ocupados, seja em
cursos, seja em treino, seja em exercícios e perder o péssimo hábito de enviar
os mancebos para casa à 5.ª feira (e outras semelhantes) para pouparem nas
finanças.
A «revolução» foi ter que arcar com o ónus – que pertencia aos políticos
– de andar a fazer propaganda como se tivessem a vender sabonetes, para se
conseguir voluntários. Ou seja a decisão de acabar com o SMO foi política, mas
a missão de angariar quem quisesse servir (ou será trabalhar?) nas FA, passou
para a IM.
E até já se teve que ouvir remoques de incompetência nesse âmbito!
E também não se pode dizer que tenha havido qualquer «revolução» com
sucesso neste particular. Basta atentar na qualidade média dos mancebos (mesmo
para as forças especiais) que se apresentaram a querer frequentar uma recruta.
O número de jovens autorizados a serem incorporados foi sempre pequeno e
não deixou de diminuir com o passar do tempo; o contingente abrangido foi
alargado às mulheres – outro erro escusado, que ninguém quer admitir –
finalmente, por terem «apaisanado» a vida nas unidades e pelas condições estabelecidas
(algumas mudadas a meio do jogo) em que os mancebos vêm mais para a tropa para
tirar cursos e estudar por conta; ficar ao pé de casa, etc. do que para serem
militares.
Para já não falar nos números do desemprego...
Por tudo isto se pode avaliar melhor a frase do actual CEMGFA ao dizer –
com ar sério – «não ter havido dificuldades no recrutamento»...
O que aconteceu não foi nenhuma revolução, foi sim uma outra palavra que
também acaba em «ão», mas nada tem a ver com a primeira. Enfim, foi-se fazendo
o possível...
E o Senhor general sabe isso muito bem.
*****
Finalmente o general Loureiro dos Santos, habitual e conhecido
comentador destas matérias.
Não podíamos estar mais de acordo com ele, ao afirmar que foi um erro,
ter-se acabado com o SMO.
Mas a questão que tem que se colocar é saber o que o senhor general fez
– depois de ter ocupado todos os elevados cargos que já exerceu – em se opor e
contrariar tal erro.
Como V. Exa bem sabe, as atitudes devem ser tomadas quando as pessoas
estão no activo em posição de influenciar o devir.
Agora é tarde e Inês está morta...
E permitirá ainda que lhe diga não entender afirmações suas como «não
percebi nesta situação de crise que estamos a viver, com a possibilidade de as
ameaças aumentarem, porque é que os governantes ainda não decidiram repor o SMO».
Toda a gente sabe, com o senhor à cabeça, porque é que isso acontece.
Explicitá-las seria bem melhor do que as camuflar com retórica...
De facto acabar com o SMO foi um erro, repito, que configura um crime de
lesa-Pátria, mas é preciso afirmá-lo com vigor e sem papas na língua.
A questão cívica vem à cabeça: a defesa do
território e das suas gentes, a unidade do estado, a dissuasão, a afirmação de
soberania e do querer coletivo, numa palavra, a defesa da continuidade da nossa
individualidade e identidade, não pode nem deve, ser apenas dever de alguns, é
um imperativo para todos.
Ao contrário do que a
Constituição prescreve, os direitos não devem estar garantidos à partida,
deviam sim, derivar dos deveres cumpridos.
Por último, Portugal é hoje um país pequeno (se exceptuarmos o mar, que
está ao «Deus dará»), com pouca população e poucos recursos. O factor humano é
o nosso recurso mais importante, e fundamental na equação geral do Poder
Nacional.
Nós não podemos desperdiçar recursos, temos que os potenciar. Essa era
outra mais-valia importante do SMO.
E já chega por hoje.