Helena Matos, Observador,
29 de Março de 2015
O que o percurso de Sócrates revelou foi uma enorme
disponibilidade da esquerda para apoiar caudilhos e a extraordinária
fragilidade daquele que, até hoje, tem sido o principal partido português, o
PS.
Andamos todos muito entretidos a discutir o futuro
das democracias por causa do crescimento de partidos que esperávamos ver como
marginais – o Syriza, o Podemos e a Frente Nacional. Muitos de nós até
agradecemos aos céus, ao PREC e ao PCP preservarem Portugal de tal assombração.
Mas nem reparamos que aquilo que podia ter acontecido em Portugal e de certa
forma aconteceu foi bem mais perigoso. Foi um grande partido tornar-se ele
mesmo um instrumento das circunstâncias pessoais de um homem, José Sócrates.
Entendamo-nos desde já e antes que comece a
ladainha na caixa de comentários sobre a inocência de José Sócrates e a sem
razão da sua detenção: não me interessam as acusações de natureza criminal que
possam vir a ser feitas contra o antigo primeiro-ministro. Experimento aliás
uma imensa vergonha de cada vez que saem mais notícias sobre tal assunto.
Afinal não passo de uma provinciana cidadã de um pequeno país que sabe que este
tipo de casos acontece em todo o lado mas que também não ignora que o mundo
reage institucionalmente quando estes casos acontecem com o Kremlin ou o
Palazzo Chigicomo panos de fundo.
Pelo contrário se o cenário for aquela pequena
vivenda de S. Bento a que por aqui chamamos palácio, os sorrisos escarninhos e
condescendentes logo aparecem. A isto, que já não é pouco, junta-se o meu sério
temor que ao reduzirem-se as dúvidas sobre a actuação de José Sócrates a um ou
muitos casos de justiça acabemos a esquecer o essencial: a condenação ou
absolvição num tribunal não pode nem deve substituir-se ao juízo moral nem
político.
Feita esta introdução passemos ao que me interessa:
a política. E aos falarmos de política chegamos àquilo que o percurso de
Sócrates revelou: uma enorme disponibilidade da esquerda para apoiar caudilhos
e uma extraordinária fragilidade daquele que, até agora, tem sido o principal
partido português. Não interessa que o PS ganhe ou perca as eleições. A
linguagem, o paradigma, as referências, o padrão do regime são socialistas em
Portugal.
Cavaco Silva conseguiu enormes vitórias eleitorais
mas continua a ser visto como um intruso no poder. Os estadistas são Soares e
Guterres. Sá Carneiro só é uma referência transversal porque morreu. E é muito
cedo para dizer que Passos Coelho conseguirá alterar esta espécie de pacto de
regime. Portanto, que o PS possa ser capturado por um grupo que o coloca ao
serviço dos seus particulares desígnios não diz apenas respeito aos
socialistas. Diz respeito a todos nós. Não tenho aliás grandes dúvidas sobre o
que seria o funcionamento das instituições da democracia portuguesas
devidamente entregue a pintos monteiros e noronhas do nascimento, caso o
governo em funções em 2011 não se tivesse visto obrigado a chamar a troika e
que consequentemente Sócrates não tivesse perdido as eleições em 2011. De igual
modo tenho quase a certeza que Sócrates preparava uma candidatura presidencial
quando foi detido. Para tudo isso podia contar com o PS transformado no seu
círculo protector.
Mas deixando o plano do que nos poderia ter
acontecido voltemos ao plano do que de facto nos aconteceu e não pode voltar a
acontecer: um partido, para mais um grande partido, sofrer um processo de
captura pelas circunstâncias pessoais do seu líder. E este usar em proveito
próprio as características desse mesmo partido. No caso, a cultura jacobina a
par da convicção de superioridade intelectual e moral dos quadros e
simpatizantes socialistas levou-os a transformar o partido numa espécie de
milícia de defesa de Sócrates.
Note-se que os partidos socialistas sempre foram um
objectivo para a chamada táctica do «entrismo» que, como é próprio de todas as
tácticas políticas muito ardilosas mas pouco eficazes, nasceu da cabeça dos
trotsquistas.
Resumidamente a coisa passar-se-ia assim:
militantes trotsquistas escondendo a sua pertença ideológica filiavam-se
noutros partidos, sobretudo nos socialistas democráticos. Uma vez lá dentro
tinham como objectivo transformar estes partidos reformistas em partidos
revolucionários.
Tudo isto tem as suas variantes que no caso
português acabam geralmente com a irónica suspeita de que o estalinista PCP
seria o grande beneficiado caso a tendência «entrista» de Manuel Serra tivesse
vingado no congresso do PS de 1974. Já em França o entrismo foi bem sucedido
quando o antigo militante trotsquista Lionel Jospin se tornou líder do PSF.
Acontece contudo que sendo os trotsquistas notáveis a conceber tácticas são
também incapazes de atender ao essencial: o infiltrado podia esquecer-se da
missão que trazia e aderir às teses da organzição que deveria subverter. Assim
nunca se soube se Lionel Jospin foi ou não um agente do entrismo da Organização
Comunista Internacionalista dentro do PSF. Mas em boa verdade não fez nada para
transformar o PSF num partido revolucionário. Aliás enquanto primeiro-ministro
proferiu a frase «l’État ne peut pas tout» um óbvio ululante mas dizer em
França no ano de 2002 que o Estado não pode tudo era um perfeito sacrilégio
face ao estatismo então e agora reinante na esquerda e na direita daquele país.
Espantosamente (ou talvez não) o PS português, que
sempre manifestou prudência face aos candidatos a entristas ou que teve a
capacidade de os tornar politicamente apresentáveis como fez com Ferro
Rodrigues e Jorge Sampaio (antigos radicais do MES) deixou-se instrumentalizar
por Sócrates. O que esse episódio nos veio mostrar é que qualquer um que domine
o jargão da esquerda e a leve a acreditar que ele sim vai derrotar a direita
inevitavelmente ultra-montana, retrógrada e reaccionária («a mais estúpida do
mundo» e «neo-liberal» também são expressões a considerar) terá não apenas o
apoio mas também a devoção do eleitorado socialista. Mais, contará com o
silêncio dos estridentes compagnons de route dos socialistas, como é o caso do
BE e seus múltiplos derivados, que vivem na esperança de fazer o melhor negócio
da política portuguesa: associarem-se ao PS ou serem convidados a entrar
naquele partido.
Seja qual for a modalidade, uma regra aplica-se
sempre: nunca uma gente que não vale mais que meia dúzia de votos consegue
tanto protagonismo e alarido em torno das suas pessoas. Para cúmulo ficam sempre
com a aura de serem a consciência de esquerda do PS o que é meio caminho andado
para se tornarem personalidades de referência e para que o PS se convença de
que fez um bom negócio.
Assim, o que perturba não é tanto o que Sócrates
fez mas sim aquilo que muitos no PS e nessa entourage que vive de o PS ser
poder não quiseram ver que ele fazia. Perturbante é ainda e sobretudo constatar
que o povo socrático continua à espera de quem lhe pegue. Não, não me estou a
referir aos que vão cantar hinos para a porta da prisão de Évora mas sim a essa
plêiade de notáveis que quanto mais insanes eram as medidas que o então
primeiro-ministro tomava mais eles resguardados nas suas universidades,
institutos, fundações, ordens e observatórios, garantiam que o primeiro-ministro
devolvera a esperança aos portugueses. Essa gente continua aí, disponível, à
espera não só de quem lhes prometa o impossível mas sobretudo de quem consiga
envolver essa promessa num imaginário de uma esquerda a «malhar na direita».
Tal como anunciava aquele homem que nos Restauradores vendia os mais
improváveis objectos «É disto que o meu povo gosta!»
Na verdade o PS gostou de
Sócrates e aquilo que esperam de cada novo líder é que ele lhes devolva o
espírito miliciano que tiveram com Sócrates. Nada disto é crime. Mas
politicamente falando é um desastre. Para maior azar foi o nosso desastre e
pode voltar a sê-lo outra vez.