Helena Matos,
Observador, 15 de Novembro de 2015
Combater o terrorismo
pressupõe o tempo longo dos pactos e a resiliência que nasce das convicções.
Ora nós vivemos o esboroamento do centro e trocámos as convicções pelas
indignações.
Não, não me apetece pela quinquagésima vez o «somos
todos» qualquer coisa, mais o facebook às riscas e a Marianne a chorar. Já
sabemos como vai ser não é? Lembram-se do Charlie Hebdo? Éramos todos tão
livres, não éramos? Pois éramos. E claro que não se pode ter medo, que a França
é a pátria da Liberdade, que mesmo ferida se vai levantar… Pois, mas em Julho
deste ano, meio ano após os atentados, o editor do Charlie Hebdo anunciou que
aquele jornal não voltaria a publicar desenhos satíricos de Maomé. Ficámos
um bocadinho menos «charlies» não foi? E o bom Charlie vai fazendo as suas
caricaturas com os bispos do costume e até entreviu no nosso governo de
esquerda uma espécie de vitória sobre o nosso passado colonial, não foi? Pois
é, com um bocadinho de esforço quase que se pode dizer que o Charlie continua
na mesma. Afinal, cada um acredita não no que quer mas sobretudo no que
precisa. Há quem goste de acreditar que continua novo apesar das rugas. Nós
precisamos de acreditar que continuamos livres.
Portanto, agora que a onda está aí de novo, mais as
flores, as velas e o Imagine, prefiro fazer de conta que não engulo em seco
diante das imagens daquela gente outra vez pendurada numa janela para não
morrer (lembram-se do 11 de Setembro?) e daquele rapaz arrastando um corpo pelo
meio da rua (uma rua de Paris!), para me poupar à irritação daquele momento que
não tarda em que cairemos no processo da voz passiva que nos leva do óbvio –
terroristas matam – ao grotesco das pessoas que «acabaram por falecer» na
sequência de actos alegadamente praticados por terroristas. Actos esses pressurosamente
transformados em respostas às políticas do Ocidente. Do Ocidente que quer o
petróleo. Do Ocidente que intervém. Do Ocidente que não intervém. Do Ocidente
que desenhou as fronteiras. Do Ocidente que fez as cruzadas… enfim uma espiral
retroactiva em que as culpas nunca se expiam antes se exponenciam. (No nosso
portuguesíssimo caso junta-se a tudo isto, segundo Ana Gomes, a demora de
Cavaco Silva em indigitar António Costa. Mas não creio que, para já, a
comunidade internacional se sinta capacitada para ponderar essa tese).
Há algo de grotesco nesta forma de ver o mundo em
que o outro – aquele que por uma qualquer razão nos odeia ou ataca – é sempre o
elemento neutro. Ele por ele nada faz. Os seus actos são sempre o resultado de
algo que nós, os nossos pais, os nossos avós e os nossos antepassados fizeram,
pelo menos até àquele polémico momento em que o Neandertal se terá cruzado no
planeta Terra com o Sapiens sapiens. Dir-se-á que isto é pateta. Pois é. Mas o
problema das visões patetas é que o seu simplismo constitui-se como argumento
eficaz na justificação do injustificável: com os terroristas reduzidos à
condição de consequência dos nossos actos, a responsabilidade pelo terrorismo
deixa de ser dos terroristas pois é transferida para aqueles que o sofrem.
Não é por acaso que após os atentados terroristas
vivemos uma sensação de desconcerto, como se não fosse justo nem lógico
fazerem-nos aquilo. Na verdade para nós não é. Mas só para nós. Do ponto de
vista do terrorista não só tudo aquilo faz sentido como é lógico: são actos
tácticos de uma estratégia com objectivos próprios.
O terrorista não é uma marionete puxada pelos fios
dos actos presentes e passados dos outros. Muito menos é alguém que buscando os
mesmos objectivos de justiça dos não terroristas apenas se enganou no caminho.
O terrorista existe independentemente de nós.
Recordo como este exercício de ver o terrorista
como um resultado e não como um sujeito dotado de vontade própria era
particularmente penoso no caso dos atentados da ETA, em Espanha. Primeiro a ETA
matava por causa de Franco. Depois veio a Transição a ETA passou a matar ainda
mais (é exactamente durante a Transição que a ETA é mais mortífera: 84 mortos
em 1979 e 93 em 1980) mas tal, dizia-se, explicava-se pelo combate à herança do
franquismo presente no aparelho de Estado. A Espanha tornou-se democrática e a
ETA continuava a matar militares, polícias, políticos e empresários mas isso
devia-se à ligação dos militares ao passado, dos polícias à repressão, daqueles
políticos à direita e dos empresários ao dinheiro. A ETA continuava a matar.
Politicamente as balas entravam em nucas de direita e de esquerda. Mas havia
sempre uma culpa da sociedade espanhola para explicar mais uma bomba e mais uma
bala: eram os presos da ETA que não podiam estar todos juntos na mesma prisão;
era o tribunal que os condenava; era o artigo no jornal que os tinha ofendido;
o empresário que não pagava o imposto revolucionário… E quando não se percebia
que ligação haveria entre a vítima e os seus verdugos aventava-se que a vítima podia
ser um informador. Ou um narcotraficante, porque a ETA queria o País Basco
livre de drogas.
A par dos atentados, a ETA desdobrava-se em várias
organizações legalíssimas e activíssimas no combate à violência (das
autoridades policiais, claro) e de promoção dos direitos humanos, (dos
terroristas obviamente). Advogados, professores universitários e jornalistas
desdobravam-se, em Espanha e fora dela, em concentrações e conferências de
denúncia destes graves atentados à democracia. Ainda por aí andam folhetos em
que ilustres participantes portugueses se propunham mediar entre a ETA e o
intransigente Estado espanhol.
Até que a 10 de Julho de 1997 a ETA sequestrou
Miguel Ángel Blanco, um vereador do PP em Ermua, e deu dois dias ao Governo,
então presidido por Aznar, para reagrupar os presos da organização
(independentista e não terrorista, segundo boa parte dos órgãos de
comunicação). A 13 de Julho o cadáver de Miguel Ángel Blanco era descoberto e
nasceu o chamado Espírito de Ermua em que para lá do PSOE e do PP terem
estabelecido uma espécie de pacto de regime no combate ao terrorismo a
sociedade espanhola deixou de procurar as culpas das vítimas em cada atentado.
Resultado: a ETA foi derrotada. Mas só a ETA,
porque o discurso do terrorismo, enquanto resposta automática e não como
estratégia de vontade própria, esse apenas mudou os protagonistas do seu
enquadramento.
Agora que os mortos se contam na França de Hollande
e não na América, para mais de Bush, resta-nos pelo menos a esperança de que
esta diferença geo-política nos poupará ao destravamento delirante das teorias
da conspiração mas não será suficiente para nos livrar do momento em que os
atentados deixam de ser atentados para se tornarem mediaticamente falando na
resposta os que fizemos, fazemos ou pensamos vir a fazer.
Quer isto dizer que não
acredito nas promessas de união para combater o terrorismo, promessas
reiteradas dramaticamente nestes dias? Na verdade não acredito que este seja o
momento Ermua da Europa. E não acredito por duas razões. Em primeiro lugar
porque combater o terrorismo islâmico implica não apenas, como no caso da ETA,
cooperação internacional – alguém ainda se lembra dos «santuários» da ETA em
França e de como eles acabaram? – mas coordenação internacional. Mais difícil
ainda de conseguir, e aqui chego à segunda razão, ou melhor dizendo ao segundo
conjunto de razões: combater o terrorismo islâmico pressupõe intervenções
militares e policiais que só se fazem com o tempo longo dos pactos e a
resiliência que nasce das convicções.
Ora nós vivemos o esboroamento do centro e trocámos
as convicções pelas indignações: às primeiras imagens de uma operação mal
sucedida e aos primeiros homens caídos, político europeu algum fora do Reino
Unido resiste às «manifestações pela paz», até porque logo os seus rivais
usarão esse apelo como argumento eleitoral.
Politica e mediaticamente
falando (o que é quase a mesma coisa), a Europa e em parte os EUA alienaram o
incómodo estatuto da soberania pelo simpático (mas mortífero) conceito de
principado. Ou seja, os seus cidadãos sonham ser ricos, cultos e livres e
acreditam e sobretudo querem acreditar que podem manter a sua segurança e a sua
dignidade através da distribuição das suas sobras e estabelecendo alianças com
outros para que estes primeiro combatam por si e depois para que não a ataquem
(qualquer comparação com a Roma da decadência não é casual).
Por isso, se me pedirem um símbolo destes dias eu
não escolho a Torre Eiffel, nem as flores, nem as velas mas sim um rosto que
não vimos. O de Zouheir. Quem é Zouheir? O segurança que impediu a entrada
de um dos terroristas no estádio onde decorria o França-Alemanha. Esperar-se-ia
que o rosto deste homem que evitou a catástrofe implícita ao rebentamento das
bombas dentro do estádio estivesse na capa dos jornais. Afinal foi um dos
heróis dessa sexta-feira. Pois foi e por isso tem medo. Medo que se vinguem
nele ou na sua família por ter feito o que devia fazer.
Sem comentários:
Enviar um comentário