João José Brandão Ferreira, Oficial Piloto Aviador
«As Instituições do passado não são
boas por serem antigas, mas são
antigas por serem boas.»
Guilherme Koehler
Um caso recente de denúncia de eventual
corrupção na aquisição de bens alimentares para abastecer as messes das
unidades da Força Aérea, agitou a opinião pública e publicada.
Neste momento existem, ao que se sabe, entre 30
a 40 arguidos, civis e militares, sendo que só se sabe a identidade dos únicos
seis militares, para já envolvidos e que estão presos preventivamente.
O que configura, desde logo, alguma estranheza.
Independentemente do desfecho do caso o dano
causado na imagem dos militares, em geral, e na da Força Aérea, em particular,
e o incómodo que tal causou na generalidade dos mesmos é indesmentível.
Não vale a pena escamotear o óbvio, mesmo
sabendo que diariamente vem nos jornais, notícias dos mais variados escândalos,
em todos os âmbitos – uma praga que faz parecer que a sociedade portuguesa
atravessa há anos (décadas) uma falta de referências morais avassaladora – o
que é verdade…
Mas, qualquer coisa que se passe no âmbito
militar, por razões que não vou especificar agora, toma sempre proporções inusitadas
por mais pequenas que sejam, o que não parece ser, infelizmente, o caso em
apreço.
Um primeiro ponto cumpre ilustrar:
A Instituição Militar é indubitavelmente
diferente da sociedade civil, pelas suas especificidades próprias e peculiares,
mas não está obviamente imune ao que se passa na comunidade à qual pertence e
que é suposto defender de qualquer ameaça externa e ser último garante da
unidade do Estado e da soberania nacional.
O segundo ponto é o de estranhar, que o processo
em causa, apresentado pela generalidade dos «media», como tendo origem numa
denúncia anónima feita algures, havendo até, conivência da hierarquia.
Ora o que se passou na realidade, é que a
suspeita de que algo não estaria bem foi espoletada numa unidade da Força
Aérea, por um subalterno que levou o caso ao comandante e, a partir daqui, foi
informada a mais alta hierarquia do Ramo, que denunciou o caso à Polícia
Judiciária Militar.
Esta entidade (PJM), que esteve para ser extinta
pelo poder político, dois governos atrás, pediu ajuda à PGR e PJ – por
manifesta falta de meios – desenvolvendo-se, então, a operação mediática que
decorreu perante o nosso olhar televisivo.
Até parece que há quem ande a ver quem se põe
mais em bicos dos pés…
Para já não falar na patética e confrangedora
qualidade das notícias/reportagens, como a evidenciada por uma jovem
jornalista, a qual postada à entrada do Estado-Maior da Força Aérea, afirmava
estar junto à porta do Estado-Maior-General das Forças Armadas e atroando o
éter com imaginativos envolvimentos de «altas patentes» (o arguido mais
graduado detido, é um major).
Os órgãos de comunicação social sofrem de muitos
defeitos terríveis (que ninguém com responsabilidades aparenta pretender
modificar); vamos ilustrar dois deles que se têm reflectido nas notícias
veiculadas sobre este caso.
Um deles é a especulação jornalística.
Por exemplo foi amplamente divulgado que o
Estado já teria sido lesado em 10 milhões de euros, no espaço de dois anos.
Umas contas simples desmontam rapidamente a
atoarda. Vejamos, o orçamento anual para a alimentação na Força Aérea é
inferior a oito milhões de euros (sendo o orçamento uma previsão).[1] A haver
tais «desvios», das duas, uma, ou toda a gente passava fome ou não havia
ninguém que não estivesse metido no esquema…
O outro comportamento inadmissível é o facto de
fazerem entrevistas com pessoas de costas, encapuzadas e com voz destorcida.
Tal prática dá direito a tudo, é equivalente a uma carta anónima e indicia
práticas delatórias e exercícios inquisitoriais, ao mesmo tempo que se permite
a pessoas ignorantes, ressabiadas ou simplesmente mal formadas, vão destilar a
sua bílis, com total impunidade.
Escusado será dizer que todo o edifício legal em
que se escoram a liberdade de expressão e de imprensa, carece de urgente
revisão, sob pena de se continuar a infligir graves danos nas mesmas.
O tipo de problemas apontados, porém, devem ser
descobertos e investigados ao nível das Forças Armadas, mas tal desiderato está
muito prejudicado pelo facto de terem acabado praticamente com a Justiça
Militar (incluindo tribunais) e, totalmente, com o seu foro próprio.
Restam quatro níveis de detecção de problemas
como este, como de resto de tudo o que possa correr mal ou vá contra os
parâmetros definidos, para as Forças Armadas, apesar de estarem muito
debilitados, devido à «erosão» contínua induzida pelos diferentes governos e
parlamentos, na Instituição Militar, faz décadas. Mas ainda existem.
Os níveis hierárquicos mencionados são: o nível
do comando de unidade; o nível dos comandos funcionais; o nível Inspecção do
Ramo, que era até há pouco tempo chefiado por um oficial general de três
estrelas e terceira figura da hierarquia – logo a seguir ao Chefe e Vice-Chefe
– e que uma das trinta mil «reestruturações» feitas nas últimas décadas
degradou para um general de duas estrelas; finalmente existe a Inspecção-Geral
de Defesa Nacional com jurisdição sobre todas as estruturas do Ministério da
Defesa.
Estes níveis são os necessários e correctos, mas
convinha não os degradar, em termos materiais, anímicos, de exemplo, de moral e
de estabilidade, a tal ponto que um dia destes pura e simplesmente colapsem.
E desenganem-se também, aqueles que julgam que o
controlo por via informática resolve tudo.
Sabe-se desde o tempo do Afonso Henriques, que a
aquisição de abastecimentos para os exércitos é sempre um ponto crítico, que
exige especial supervisão e cuidado. O que é transversal a todos os exércitos,
desde a Antiguidade Clássica…
Por isso a cultura acumulada no exercício do
comando tem isso bem presente (ou deve ter) desde tempos imemoriais.
O mesmo se aplica, aliás, a tudo o que envolve «negócio»
gerido por humanos, sabendo-se a facilidade com que se pode acabar em
corrupção.
Ora o que pode ser preocupante – mesmo tendo em
conta que por vezes é difícil descobrir determinadas ocorrências – é que este
caso, a confirmar-se, aparenta não ser um caso pontual, mas configura uma
organização tipo «associação de malfeitores»
Entretanto esperamos que se faça justiça e quem
eventualmente enlameia a Instituição Militar seja punido exemplarmente ou, como
se diz na gíria militar, «devidamente beneficiado»…
[1] De notar que este orçamento contempla a «alimentação
em espécie»; a «alimentação em dinheiro»; as «rações de combate» e as «rações
de voo».
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