João José Brandão Ferreira, Oficial Piloto Aviador
A coisa vem de trás.
Começa aí por meados dos anos 80 do século passado.
Os fumos de «glória» do 25 de Abril já se tinham ido há muito, tendo a
Instituição Militar saído completamente ferida e rebaixada da descolonização e
do «PREC».
O 25 de Novembro ficou a meio (ou nem isso) e as feridas levam tempo a
sarar.
Algumas nunca saram.
As Forças Armadas ficaram de mal consigo próprias e com a Nação. E esta
com aquelas.
Nunca ninguém quis admitir isto.
*****
Extintas as escolas industriais e comerciais – erro imperdoável que
ainda não foi reparado – quis fazer-se de toda a gente um licenciado numa área
qualquer. Pois não temos todos nós direito a tudo e não somos todos iguais?
Está até, na Constituição…
Como entretanto o Ministério da Educação implodiu e foi sendo ocupado
por sucessivas vagas de gente dificilmente adjectivável, a qualidade do ensino
e dos professores; a disciplina nas escolas; a avaliação; a estabilidade dos
programas e dos compêndios, da pedagogia, e as próprias infraestruturas, caíram
a pique.
Deixou de haver escola para haver choldra.
Daí para cá poucas melhorias houve, apesar dos sucessivos orçamentos de
novos – ricos atribuídos ao sistema – um poço sem fundo! [1]
Parece que rendia votos e apaziguava consciências.
Por isso é risível (se não fosse trágico) a tão apregoada qualidade das
actuais gerações que brotam do sistema, baptizadas, sem água benta, das «mais
bem preparadas de sempre»!
Apregoam isto com ar sério e não dei conta, até agora, de nenhum filho
d’algo que o rebata.
Entretanto o «negócio» do ensino disparou, sobretudo nas áreas das
ciências sociais (que só exige «papel e lápis»), sem que os poderes do Estado o
tentassem regular, assistindo-se apenas a uma inquinada discussão ideológica
sobre o ensino privado e o público…
*****
O ensino militar, apesar de tudo, resistiu muito melhor (pondo de lado o
que se passou nas escolas militares em 1974/75…).
Afastados das lides culturais e até dos avanços na guerra convencional,
por via das longas campanhas contra subversivas no Ultramar Português entre
1961 e 1974, foi preciso um esforço de reconversão enorme logo que a
estabilidade institucional se foi ganhando a seguir aos eventos ocorridos em 25
de Novembro de 75.
Esse esforço fez-se e foi notável.
A Força Aérea (FA) e a Marinha recuperaram mais facilmente do que o
Exército.
A FA porque teve um notável Chefe de Estado-Maior (o general Lemos
Ferreira) que impôs uma dinâmica difícil de imitar; a Armada porque foi o Ramo
menos afectado pela guerra e porque manteve sempre uma presença e ligação à
NATO.
O Exército por ser o Ramo mais causticado pelo conflito e pelo PREC; por
ter um número de efectivos superior; ser tecnologicamente mais atrasado e, até,
por dominar menos a língua inglesa, teve mais dificuldade em «dar o salto».
Mas a Instituição Militar – não por acaso, por causa das suas
características – no seu todo andou à frente do ensino civil, coisa que a
generalidade dos próprios militares, incluindo as suas chefias, nunca deu conta
(os militares acabam sempre por ser vitimas deles próprios…).
Deu-se, «naturalmente», sobretudo a partir da publicação da Lei de
Defesa Nacional e das FA, em 1982, um auto rebaixamento dos militares e uma
sobranceria por parte da chamada intelectualidade civil no âmbito das mais –
valias académicas, facto que era exacerbado pelas forças políticas do «centrão»
que nunca perdoaram a existência do Conselho da Revolução e os dois Pactos
MFA/Partidos.
O PCP, apesar da sua prudência (enquanto minoritários), nunca reconheceu
nada que não se paute pela sua cartilha, e da extrema-esquerda nem vale a pena
falar por via dos seus preconceitos, estereótipos e militância contra tudo o
que cheire a fardas ou tenha a palavra «militar».
Daqui à questão das «equivalências universitárias» foi um passo (questão
que nunca se tinha colocado até 1974).
Convenhamos que até poderia haver vantagens em ter este assunto
harmonizados entre militares e civis, mas o que se veio a verificar foi a
tentativa de invasão do ensino militar pelo ensino civil, chegando-se ao ponto
de ter havido uma tentativa de colocar um catedrático civil como uma espécie de
Reitor do Instituto sito em Pedrouços, onde entretanto se agruparam os cursos
de formação e promoção comuns aos três Ramos das Forças Armadas (e, nalguns
casos, a GNR)! [2]
A adopção dos cursos de Bolonha veio dar mais um sério abalo em todo o
conjunto.
Pelo meio passaram-se as mais desvairadas coisas: pensar que um oficial
das áreas de engenharia ficaria melhor á frente de uma Academia Militar;
privilegiar áreas de ensino civil em detrimento das disciplinas militares;
querer que um cadete passasse a ser um super-homem académico; fazer cortes a
esmo na preparação física e no desporto militar; querer impor limites aos
tempos lectivos dos militares e «adequá-los» aos mesmos das universidades civis
– como se pudesse haver alguma comparação possível; haver preocupações em dar
equivalências civis, para que os futuros oficiais, pudessem encontrar emprego
noutras áreas quando abandonassem o serviço activo – como se alguma vez tenha
passado pela cabeça de alguém ter essa preocupação relativamente a um outro
curso/profissão qualquer, etc.
Um etecetera penoso.
E foi assim que, pouco a pouco, se chegou ao ponto de ser «bem», que um
militar, numa altura qualquer da sua carreira, conseguisse um grau académico
civil. Os regulamentos de avaliação de mérito dos militares passarem até, a ter
isso em conta.
A exigência de nas escolas superiores militares, passar a haver uma
percentagem de professores «doutorados», também contribuiu para esta «febre».
E, claro, com mais um canudo na mão, sempre se pode iludir a ideia feita
em áreas de pensamento da sociedade, em que um militar é assim uma espécie de
bípede quadrado, aparentado à família dos asnos…
Ora tudo isto não é mais do que um sintoma profundo do descalabro em que
o conceito da «profissão» militar caiu na generalidade da população, o que foi
exponenciado pelo desprezo dos políticos, a falta de isenção, silêncio,
incompetência e acinte da comunicação social; o fim do serviço militar
obrigatório, a ignorância cívica e a falta de consciência colectiva de qualquer
tipo de ameaça externa.
Não quero, porém, ser mal interpretado: obter um grau académico é, à
partida, uma mais-valia quer em termos individuais, quer colectivos.
Mas as coisas têm que estar em perspectiva e não se deve perder de vista
os objectivos fundamentais dos oficiais e sargentos das FA, que é o de serem
capazes de comandar unidades militares num teatro de operações, onde e quando
necessário e em quaisquer circunstâncias.
Ora isto não se coaduna com diletantismos académicos e logo numa
instituição onde os seus quadros já passam, desde há décadas, cerca de um
quarto do seu tempo de serviço ocupados em cursos – o que não tem paralelo em
qualquer outra profissão…
Ou seja os graus académicos civis devem ser vistos como complemento das
exigências e necessidades militares, ou para cumprir um objectivo específico e
sempre devidamente orientados.
*****
A Instituição Militar, como tal, tem-se mostrado perfeitamente incapaz
de reagir a toda a degradação que a afecta (e à Nação) e os militares confundem
amiúde, causas e efeitos mantendo a «ordem de batalha» constantemente
desactualizada.
Finalmente, a constante redução de efectivos, perspectivas de carreira,
fecho de unidades; falta de sistemas de armas; redução de capacidades,
competências, retribuições, etc., têm tido efeitos devastadores sobre o moral
de todos passando-se, a nível das chefias, ao modo de sobrevivência e ao nível
do quadro permanente, ao modo do «salve-se quem puder».
E que outras alternativas existem para quem não tenha quem os defenda;
não haver navios para navegar, aviões para voar e homens para comandar?
Dinheiro para exercícios, para a assistência social, para… nada?
Por isso, caros leitores e compatriotas, um dia destes verão o que resta
da tropa, quase todos transformados em doutores, mas ninguém que saiba dar um
tiro.
[1] Muito à custa do orçamento da Defesa e Segurança…
[2] Chamemos-lhe apenas Instituto, pois já não há paciência para referir o nome completo, tal tem sido a profusão de mudanças!
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