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Trump:
«feito comparável ao do presidente John F. Kennedy na Crise dos Mísseis». –
Foto: Nicholas
Kamm/AFP |
A
guerra civil na Síria remete, mesmo que vagamente, à Guerra Civil de Espanha,
que precedeu a II Guerra Mundial e se estabeleceu como um dos marcos políticos
do século passado. Não existe decisão simples num cenário assim.
Filipe Martins, Gazeta do Povo, 10 de Abril
de 2017
Não é possível
compreender os actuais desdobramentos da política internacional sem entender a
guerra civil que, desde Março de 2011, se desenrola na Síria. Este conflito é
importante por, pelo menos, dois motivos. O primeiro é que o seu desfecho
poderá reconfigurar de forma decisiva o Médio Oriente. O segundo, ainda mais
relevante, é que o conflito sírio atraiu a presença e o envolvimento das
principais potências regionais e globais, apresentando-se como um possível
ensaio geral de uma guerra sistémica – aquilo que popularmente chamamos de
«guerra mundial».
Os Estados Unidos da América, a Rússia, o Irão, a Turquia e a França estão
todos envolvidos de algum modo no conflito, assim como uma série de actores
não-estatais, como o Estado Islâmico, a Al-Qaeda, o Hezbollah e grupos formados
por árabes seculares e por curdos. Além disso, também pesam sobre os
desdobramentos do conflito a influência económica da China e de países do golfo
pérsico, como a Arábia Saudita e o Qatar.
O envolvimento de todas
estas potências nas disputas domésticas de uma nação remete, mesmo que
vagamente, à Guerra Civil de Espanha, que precedeu a II Guerra Mundial e se
estabeleceu como um dos marcos políticos do século passado.
O conflito espanhol teve início em Julho de 1936, quando o general Francisco
Franco liderou uma revolta nacionalista contra o governo republicano, de
inclinações socialistas, precipitando o envio de tropas por parte da União
Soviética, da Alemanha nazista e da Itália fascista para o país ibérico. A
França e o Reino Unido não se envolveram efectivamente, mas acompanharam de
perto todo o desenrolar do conflito, que acabou servindo como um ensaio geral
para a guerra sistémica que viria a seguir. Ali, novas armas e estratégias
foram testadas, até que o conflito chegasse a um desfecho em Abril de 1939,
apenas cinco meses antes do início da II Guerra Mundial, marcado pela invasão
da Polónia pelos nazistas alemães e pelos comunistas soviéticos.
Afirmar que qualquer cenário minimamente parecido com aquele que precedeu o
maior conflito de todos os tempos não pode ser ignorado nem tratado com
leviandade não é exagero — e é com isso em mente que devemos analisar os
desdobramentos do conflito sírio, com destaque para a resposta dos EUA ao uso de
armas químicas, realizado no dia 4 de Abril na cidade de Khan Shaykhun em
Idlib, província maioritariamente controlada por grupos ligados à Al-Qaeda,
causando a morte de cerca de 100 civis.
Perguntas e respostas
Na última quinta-feira, dia 6 de Abril, o presidente Donald Trump ordenou um
ataque contra a base aérea síria de Shayrat, suscitando uma série de perguntas,
cujas respostas são imprescindíveis para compreender os impactos de uma acção
americana mais directa no conflito e antecipar o que virá a seguir.
A primeira pergunta que se impõe está relacionada às motivações por trás do uso
de armas químicas. Por que Bashar al-Assad, presidente sírio, realizaria um
ataque desta natureza, num momento em que tudo parecia conspirar a seu favor?
A explicação oficial de Assad, endossada pelos russos, sustenta que o gás sarín
teria sido libertado após um ataque convencional contra um depósito de armas da
Al-Qaeda. Embora não seja impossível, essa hipótese é pouco provável, uma vez
que o gás sarín tende a ser destruído em temperaturas elevadas como a que é
causada por explosões. A probabilidade de que o gás tenha resistido à explosão
e que se tenha espalhado pela vila é pequena o bastante para ser encarada com
cepticismo.
Há a possibilidade de que
o próprio Assad tenha optado pelo uso de armas químicas, como uma táctica
destinada a aterrorizar a população, deixando um exemplo para os civis que
ainda cogitam auxiliar os rebeldes
Há outras explicações
possíveis. Por um lado, há a possibilidade de que um comandante local tenha
sido o responsável pela decisão de realizar um ataque desta natureza. Por
outro, há a possibilidade de que o próprio Assad tenha optado pelo uso de armas
químicas, como uma táctica destinada a aterrorizar a população, deixando um
exemplo para os civis que ainda cogitam auxiliar os rebeldes, além de abrir o
caminho para uma vitória definitiva sem precisar de esgotar ainda mais os seus
recursos.
Ambas as explicações são
plausíveis. Embora se possa argumentar que o governo sírio mantém um rígido
controle do seu arsenal químico, não se pode ignorar a presença de comandantes
indisciplinados entre os seus aliados. Quanto à segunda explicação, seria
compreensível que, diante da certeza de que nunca será amado em certas regiões,
o regime fizesse a velha opção maquiavélica de agir com a intenção de se tornar
ainda mais temido pelos seus oponentes – esta parece ser a hipótese aceite por
Trump e os seus generais.
Um segundo conjunto de
perguntas diz respeito à postura dos russos. Vladmir Putin envolveu-se,
decisivamente, no conflito em 2013, com a finalidade de preservar o governo de
Assad, dar uma demonstração do seu poderio militar para a população russa,
além, é claro, de aumentar o seu poder de barganha frente os países ocidentais,
conseguindo assim uma posição mais favorável nas negociações sobre a Crimeia e
sobre o leste da Ucrânia.
Desde o seu
envolvimento, a Rússia tem ampliado a sua capacidade de controlar o regime
sírio e, ao menos em tese, os seus serviços de inteligência deveriam ser
capazes de prever e impedir o uso de armas químicas no conflito. Sendo alvo
constante de críticas por o seu apoio ao governo de Bashar Al-Assad, a Rússia
não teria nenhum interesse em promover ou permitir um ataque desta natureza –
afinal, quanto pior a imagem de Assad perante a opinião pública internacional,
mais difícil se torna a tarefa dos diplomatas russos de defender o seu apoio ao
regime como uma opção legítima.
Sendo
alvo constante de críticas por o seu apoio ao governo de Bashar Al-Assad, a
Rússia não teria nenhum interesse em promover ou permitir um ataque desta
natureza – afinal, quanto pior a imagem de Assad perante a opinião pública
internacional, mais difícil se torna a tarefa dos diplomatas russos de defender
o seu apoio ao regime
É importante tornar
saliente, no entanto, que a sobrevivência de Assad, em si mesma, não é
imprescindível ao interesse nacional russo e que os argumentos que são
apresentados para comprovar esta tese não se sustentam. O mais forte destes
argumentos é o de que a Rússia visa obter autorização para a construção de uma
base naval com acesso para o Mediterrâneo e que somente Assad poderia garantir
esta autorização. Mesmo este argumento, no entanto, mostra-se frágil diante do
facto incontestável de que a construção e a manutenção desta base teriam como
condição inevitável a autorização contínua de passagem por parte da Turquia –
isto para não mencionar a exposição da base e das frotas russas ao poderio
americano, ou a existência de objectivos e preocupações mais urgentes do que a
fantasia moscovita de se tornar um poder mediterrâneo.
Também cabe lembrar que
o envolvimento de Moscovo no conflito foi pensado para demonstrar o poder e a
maturidade estratégica das tropas russas, de modo a produzir um contraste com a
actuação dos EUA no Iraque e fortalecer as ambições de reforma global dos eurasianos.
A recorrência de ataques químicos, portanto, não apenas inviabiliza este
objectivo como projecta a percepção de que os russos ou são cúmplices da
brutalidade do regime, ou são incapazes de controlá-lo – isto é, ou são
criminosos ou incompetentes.
Nestas circunstâncias,
qualquer objecção, por parte de Moscovo, aos ataques americanos contra um
regime que nem sequer estaria em vigência, se não fosse por a sua
interferência, torna-se um pouco deslocada e desconfortável, enfraquecendo até
mesmo o poderoso argumento de defesa da soberania síria.
Há, é claro, a hipótese
de que, mesmo diante de tudo isto, os russos tenham incentivado ou promovido
directamente o ataque – numa táctica similar à descrita por Alexander
Litvinenko no livro «Blowing Up Russia» — com a finalidade de testar o novo
governo americano. Mas os riscos da operação, e a existência de alternativas
significativamente mais seguras que poderiam servir ao mesmo propósito, faz
desta uma hipótese pouco provável.
Diante disto, a autoria
do ataque permanece em aberto, o que não significa que o desfecho das
investigações possa afectar significativamente a qualidade da acção escolhida
por Donald Trump, que, como veremos abaixo, parece ter considerado esta
«incerteza» no seu processo decisório.
Porque Donald Trump
atacou a Síria
Por isso mesmo, as
perguntas mais importantes são aquelas que dizem respeito ao processo de tomada
de decisão que levou Donald Trump a optar pelo bombardeio da base de Shayrat e
que, de algum modo, podem ajudar a esclarecer a visão estratégica por trás da
acção escolhida.
As reacções ao
bombardeamento foram as mais diversas, suscitando elogios por parte de alguns
dos críticos mais ferrenhos do presidente e críticas por parte de alguns dos
seus apoiantes mais exaltados. Aos que desejam compreender o que efectivamente
se passou, no entanto, cabe analisar as condicionantes internas e externas para
identificar quais eram as opções disponíveis ao presidente americano,
compreender como chegou a uma escolha, e entender o que esta escolha revela
sobre a visão adoptada sobre o conflito e, mais amplamente, sobre a sua
política de segurança nacional.
Como se sabe, esta não é
a primeira vez que os EUA procuram identificar alvos ligados ao regime sírio
para possíveis ataques militares. Em 2013, após o uso de armas químicas em
Ghouta, que violou a famigerada «linha vermelha» de Obama, as forças armadas
americanas e os seus principais aliados consideraram uma série de opções de
retaliação, sendo travadas pelo imobilismo de Obama e pela engenhosidade
estratégica de Putin, que assumiu a responsabilidade de controlar a situação no
território sírio. De 2013 para cá, houve, no entanto, uma mudança bastante
significativa que acabou por limitar as opções disponíveis: o ingresso de tropas
russas na Síria em 2015.
Como os EUA não têm
qualquer intenção de começar um conflito armado com a Rússia, esta mudança
reduziu drasticamente as opções disponíveis em 2013 para um número bastante
limitado de opções em 2017, impondo ao presidente americano uma situação muito
mais delicada do que a que ele teria encontrado há quatro anos. Nestas
circunstâncias, é possível afirmar com elevado grau de certeza que as opções,
apresentadas por generais e assessores, não tenham ido além das que são
descritas abaixo.
Opção 1: Ataque
punitivo pontual
Um ataque punitivo
pontual a um alvo escolhido a dedo é o menos arriscado e o que menos demanda
recursos. Esta opção seria suficiente para reafirmar a credibilidade dos EUA e
a sua disposição de cumprir a sua palavra, desestimulando qualquer uso futuro de
armas de destruição maciça e enviando um recado claro a todos os inimigos,
efectivos e potenciais, do país e dos seus aliados. Ataques punitivos podem
variar em intensidade, duração e alvo, mas têm como finalidade última de enviar
uma mensagem clara às partes envolvidas e interessadas, sem, no entanto, dar
início a qualquer acção militar de médio ou longo prazo. Como o próprio nome
diz, trata-se de uma acção pontual, com um objectivo claro e não a primeira de
uma sequência de acções destinadas a alterar os rumos do conflito em qualquer
direcção.
Determinando um alvo. Nesta opção, há um maior número de alvos possíveis de que o presidente
estaria disposto a considerar. Estes alvos são compostos basicamente por
dependências militares utilizadas pelo comando e pelo alto escalão do regime
sírio, e o seu ataque enviaria a mensagem de que a liderança política e militar
será responsabilizada e pagará por qualquer acção que, como o uso de armas
químicas, seja considerada inaceitável pelos EUA e por os seus aliados. Isto
não significa, entretanto, que o presidente Bashar Al-Assad esteja entre os
alvos possíveis, uma vez que um ataque dirigido contra ele arrastaria os EUA
para o conflito, algo que, como a Casa Branca continuamente tem lembrado, não
está nos planos do presidente Trump.
Além disso, para o real
sucesso desta opção, o ataque deve ser realizado contra um alvo de grande valor
simbólico e com o menor quociente de riscos e despesas possível. Neste
contexto, a escolha mais óbvia é a base de onde partiu o avião cujo ataque
teria provocado a morte dos civis, já que, não custa lembrar, o regime sírio
não questiona a veracidade do ataque nem nega o envolvimento do avião que
partiu de Shayrat no acontecimento. Assad e os seus aliados alegam ter
realizado um ataque convencional, que, ao atingir um depósito mantido pelos
rebeldes, acidentalmente, teria libertado o gás responsável pela morte dos
civis; o que significa que há uma crença compartilhada de que a base serviu de
pontapé inicial para o ataque, quer este tenha sido intencional ou não, fazendo
dela um alvo praticamente perfeito.
Opção
2: Limitar ou eliminar a capacidade do governo
de realizar ataques com armas de
destruição maciça
Caso o presidente
desejasse ir além, poderia optar pelo extermínio da capacidade do regime sírio
de empreender ataques com armas químicas ou com armas de destruição maciça de
modo geral. Neste cenário, o ataque às dependências utilizadas pelo comando
militar deveria ser, cautelosamente, combinado com uma série de ataques aos
meios de comunicação das forças leais ao regime e a toda uma rede de alvos
estratégicos, o que provavelmente incluiria sistemas de defesa mantidos pelas
tropas russas e precipitaria um conflito entre as duas potências.
Determinando um alvo. Neste cenário, os ataques deveriam ser direccionados aos três meios
de que o governo de Damasco dispõe para realizar ataques químicos: a sua força
aérea, o seu sistema de mísseis balísticos e a sua artilharia de longo alcance.
Embora algumas bases aéreas tenham sido capturadas ou neutralizadas pelos
rebeldes, o regime ainda controla pelo menos seis bases funcionais que podem
ser utilizadas em ataques químicos.
Os EUA teriam que
neutralizar todas as seis bases, optando por um bombardeamento completo, por um
ataque às aeronaves estacionadas ou pela destruição dos depósitos de
combustível e de munições, combinando qualquer uma destas acções com a
sabotagem dos radares, das áreas de manutenção, da infra-estrutura de controle
no solo e, provavelmente, dos sistemas de defesa.
Além da Força Aérea
Síria, o ataque também teria, necessariamente, que englobar as demais forças
leais ao regime que possuem artilharia de longo alcance e mísseis balísticos
capazes de projectar armas químicas, o que inclui a Rússia e o Irão. A
complexidade e a natureza deste tipo de acção, além dos riscos de um confronto
directo com os russos, torna-a inviável a quem, como o presidente Trump, não
está disposto a ingressar num conflito pleno contra o governo de Assad e os
seus aliados.
Opção 3: Mudança de
Regime
Uma terceira
alternativa, que aparentemente nem sequer foi considerada pelo presidente, é a
do envolvimento pleno dos EUA no conflito, com a finalidade de derrubar e
substituir o regime sírio. A maior parte das críticas feitas pelos apoiantes de
Donald Trump foram feitas por quem, por desconhecimento ou temor, acredita que
qualquer acção militar americana levaria (e levará) a esta opção, algo que está
longe de ser verdade. Neste cenário, o presidente deveria estar disposto a
iniciar uma acção militar extremamente complexa, custosa e incerta, do tipo que
foi realizada no Iraque e no Afeganistão — uma opção que, como observado acima,
tem sido reiteradamente rejeitada pela Casa Branca e, ao que tudo indica, não
deve nem ao menos ter sido cogitada na actual conjuntura.
Opção 4: Inação
Por fim, o presidente
poderia ter seguido a recomendação dos isolacionistas e não ter feito nada.
Neste cenário, o presidente deveria justificar a sua decisão, provavelmente
recorrendo a um discurso que afirmasse o seu compromisso incontornável e
exclusivo com os problemas domésticos e demonstrasse a sua determinação de
ignorar o que ocorre noutras regiões do mundo, mesmo que estes acontecimentos
representem riscos claros para a segurança nacional americana — conter o uso
indiscriminado de armas químicas (um tipo de arma de destruição maciça), por
exemplo, é objectivamente uma questão de segurança nacional e o seu uso demanda
uma resposta, independentemente de quem seja o responsável.
Ao contrário do que
alegam os isolacionistas, esta opção não implicaria resultados neutros, mas a
proliferação do caos e da desordem em várias regiões do globo, a começar pelo conflito
entre as duas Coreias e pelas tensões no Leste europeu, do mar do Sul da China
e do próprio Médio Oriente, uma vez que todos os actores envolvidos nestas
questões realizariam um novo cálculo estratégico e acrescentariam a variável
«isolacionismo americano» à equação.
Diante disto, portanto,
era necessário encontrar um meio termo entre o completo isolacionismo e o
completo activismo, do tipo que é defendido pelos neocons e pelos cosmopolitas
liberais de modo geral e que, via de regra, justifica as operações de mudança
de regime. Como veremos, foi exactamente o que o presidente Donald Trump fez.
Riscos e custos
Embora a gama de opções
de acções militares disponíveis varie no grau e na probabilidade de risco,
nenhuma delas é totalmente segura. Ao analisar as opções, Donald Trump e os
seus assessores tinham consciência de que os riscos eram muitos, podendo ir
desde a perda material e a baixa de militares americanos até ao início de um
conflito armado com a Rússia e o desencadeamento de um conflito sistémico.
Mesmo que os ataques
fossem empreendidos de forma cirúrgica e impecável (como parecem ter sido),
haveria consequências para as operações americanas no território sírio,
incluindo aquelas que têm como alvo o Estado Islâmico. Qualquer acção poderia
aumentar significativamente a probabilidade de que as forças aliadas a Damasco
se sentissem motivadas a interferir e a atrapalhar as operações aéreas e
terrestres dos EUA no país, gerando tensões e demandando cuidados extras. Além
disso, Moscovo provavelmente suspenderia o acordo de coordenação militar com
Washington que tem por finalidade evitar incidentes no espaço aéreo sírio,
acrescentando um ingrediente extra de confusão (desde que o texto foi escrito,
esta última previsão confirmou-se).
Em suma, não haveria
opções fáceis na Síria e qualquer decisão levaria a consequências mais ou menos
indesejáveis para Washington, podendo, por uma via ou por outra, aumentar ainda
mais os riscos de uma escalada militar entre a Rússia e os EUA e multiplicar a
ocorrência de erros de cálculo num conflito que já é bastante complicado – isto
só seria evitável se o presidente e os seus conselheiros conseguissem chegar a
uma resposta próxima do ideal.
A decisão de Donald
Trump
Tendo um conhecimento
razoável da situação e conhecendo as opções disponíveis, é possível compreender
o processo de tomada de decisão utilizado pelo presidente americano e inferir,
a partir da sua decisão efectiva, o que podemos esperar da sua política de segurança
nacional e, portanto, das suas acções futuras.
Todos os presidentes
desenvolvem propostas políticas e apresentam-as com uma roupagem atraente nos
seus discursos. Porém, nos momentos decisivos, mesmo os mais determinados a
cumprir as suas promessas — como Donald Trump — são limitados pela realidade,
isto é, pelo conjunto de condicionantes domésticas e internacionais que compõem
uma dada conjuntura. Isto exige um esforço considerável para se chegar à melhor
solução possível em determinadas circunstâncias e, portanto, torna inadequadas
as cobranças feitas por quem não está familiarizado com o processo de tomada de
decisão política e militar, ou não tem imaginação suficiente para reconstruir
mentalmente os limites impostos por determinadas circunstâncias, e que,
exactamente por ignorar que um presidente opera na esfera do possível, tem como
expectativa algum tipo de solução ideal, que nunca será implementada por
existir apenas no mundo inefável das ideias.
O presidente Donald Trump não traiu a sua base nem
descumpriu as suas promessas. Pelo contrário, fez o que tinha de ser feito para
evitar o ingresso dos EUA num conflito armado, seja pela via da imprudência
intervencionista, seja pela via da fraqueza convidativa do isolacionismo
O presidente Donald
Trump não traiu a sua base nem descumpriu as suas promessas. Pelo contrário,
fez o que tinha de ser feito para evitar o ingresso dos EUA num conflito
armado, seja pela via da imprudência intervencionista, seja pela via da
fraqueza convidativa do isolacionismo. Continua comprometido com o seu
objectivo de priorizar as questões domésticas, de reestruturar a economia e as
forças armadas americanas, bem como de evitar uma exposição desnecessária dos
EUA em conflitos que não afectam o interesse nacional americano; mas, ao
contrário dos seus críticos, entende que a passividade e a inação teriam
consequências bastante distintas das esperadas, podendo precipitar justamente
os conflitos que ele, manifestamente, deseja evitar.
Trump fez de forma magistral
o que qualquer pessoa que, compartilhando dos seus objectivos e vendo-se
naquela situação, seria compelida a fazer: realizar uma acção pontual, viável,
sem qualquer tipo de exposição desnecessária e gastando o mínimo de recursos
possível. Com isto, de uma só vez, demonstrou o poder americano e expôs os seus
limites — exibindo, porém, a sua capacidade de alcançar excelentes resultados,
mesmo diante destas limitações.
O que os apoiantes
frustrados do presidente Donald Trump, e os críticos do ataque de modo geral,
precisam entender é que ignorar o uso de armas químicas não era uma opção
viável, independentemente de quem as tenha utilizado. As razões disto são
muitas. Em primeiro lugar, o uso deste tipo de armas tem o efeito de um acto de
terror e, com a perspectiva de que estas armas caiam nas mãos de grupos
terroristas, o seu uso acaba espalhando o medo por todo o mundo, incluindo os
EUA e os seus aliados. Em segundo lugar, o exemplo deixado pela decisão de
Obama de não retaliar compeliu o actual presidente a agir de modo a se
distinguir claramente do seu antecessor. Por fim, a análise da situação
concreta, levou-o à conclusão de que a inação não era a melhor maneira de
alcançar o objectivo de manter os EUA seguros e distantes de um conflito.
Os que o criticaram por não adoptar uma acção mais
enérgica devem entender que qualquer tipo de acção decisiva na Síria é
impossível
Do mesmo modo, os que o
criticaram por não adoptar uma acção mais enérgica devem entender que qualquer
tipo de acção decisiva na Síria é impossível. Os EUA contam, actualmente, com
um efectivo de mais ou menos mil militares na Síria, quando precisaria de um
efectivo pelo menos cem vezes maior do que isso para derrubar o regime e tentar
pacificar o país. Além disso, como os americanos aprenderam no Iraque, é muito
mais fácil derrubar um regime do que o substituir efectivamente e conseguir
qualquer sucesso na pacificação do país.
Os EUA simplesmente não
podem envolver-se num conflito infindável, no mesmo momento em que o seu presidente
e principal comandante acaba de definir como prioridade a reabilitação do seu
poderio militar, desgastado após 15 conflitos desnecessários. Mesmo
desconsiderando as consequências nocivas de uma mudança de regime (a Síria
poderia ter um desfecho ainda mais desastroso que o da Líbia), esta opção não
seria viável e, ao menos por ora, não deveria ser cogitada nem mesmo pelos
maiores entusiastas das operações de mudança de regime ou pelos opositores mais
imprudentes da Rússia.
Resultados alcançados
Um último dado, tão
relevante quanto os anteriores para compreender o processo decisório e a
política de segurança nacional de Donald Trump, é a divisão que há, no seio do
seu governo, entre os isolacionistas – como Steve Bannon, estrategista-chefe da
Casa Branca – e os cosmopolitas – como Jared Kushner, assessor sénior e genro
do presidente. Representando e expressando as duas principais posições
adoptadas pelos republicanos e pela base de Donald Trump, estes dois grupos
defendiam, ao menos no campo das ideias, posições que tiveram de ser
descartadas pelo presidente.
Diante de duas opções
ideológicas e impraticáveis, Trump optou por um ataque punitivo pontual, a
primeira opção analisada neste artigo, realizando uma acção calculada para ter
poucas baixas, para não atingir civis nem militares estrangeiros, e para
funcionar como um indicativo claro de que o uso de armas de destruição maciça
não será tolerado, sem, no entanto, levar o governo americano à uma mudança
radical de postura e de política frente ao conflito e, menos ainda, ao
compromisso com qualquer tipo de operação de mudança de regime.
Se Trump não agisse,
revelaria-se fraco e comprometeria a segurança do seu país e do seu governo. Se
Trump se envolvesse de modo excessivo no conflito, revelaria-se imprudente e
comprometeria a segurança do seu país e do seu governo. Com um ataque punitivo
pontual, realizado pelo disparo de 60 mísseis tomahawk, a partir de dois
destroyers da frota mediterrânea, contra a base de Shayrat, Trump conseguiu
cumprir os seus objectivos com um quociente de custos e de riscos mínimo.
Se Trump não agisse, revelaria-se fraco e comprometeria a
segurança do seu país e do seu governo. Se Trump se envolvesse de modo
excessivo no conflito, revelaria-se imprudente e comprometeria a segurança do
seu país e do seu governo
Esta acção também parece
ser suficiente para aplacar temporariamente a pressão dos dois grupos que se
agitam no seio do governo e para evitar, ao menos a curto prazo, novos embates
desta natureza. O grupo de Bannon provavelmente ficará satisfeito o suficiente
com a recusa do presidente de se envolver numa operação de mudança de regime. O
grupo de Kushner provavelmente ficará satisfeito o suficiente com a
demonstração de que os EUA estão prontos para exercer a sua liderança diante de
ameaças globais.
Além de alcançar os seus
objetivos imediatos (enviar uma mensagem clara de que não tolerará o uso de
armas químicas, evitar um conflito com a Rússia e, ao mesmo tempo, aumentar o
poder de barganha americano), Donald Trump conseguiu ainda uma série de
vitórias colaterais.
Em primeiro lugar,
obrigou os seus adversários na classe política e nos média a elogiar a sua
acção e a sua competência, desmantelando uma das principais narrativas
utilizadas contra ele. Em segundo lugar, conseguiu enfraquecer as suspeitas de
que deve algo a Vladmir Putin e à Rússia. Em terceiro lugar, enviou um recado
claro para a China, para o Irão e principalmente para a Coreia do Norte de Kim
Jong-un.
Por fim, evitou que o
conflito sírio, ao menos por ora, se deteriorasse e levasse a uma guerra
sistémica. Muitos dirão que ainda é cedo para dizer, mas Trump parece ter
conseguido resolver uma parte relevante dos seus problemas militares com uma
única acção – um feito comparável ao do Presidente John F. Kennedy na Crise dos
Mísseis.