João José Brandão Ferreira, Oficial Piloto Aviador
«Nenhum dos nossos
inimigos se atreveu a
atacar-nos quando reunimos todas as nossas
forças, tanto por causa da nossa experiência
nas coisas do mar, como
pelos muitos
destacamentos que temos
em diversos
lugares do nosso território».
In, Oração de Péricles, 430 A.C.
O Decreto do PR n.º
1-D/E/F promoveu três majores generais (duas estrelas), do Exército a tenentes generais
(três estrelas).[1]
Não estando em causa as
pessoas, tão pouco a sua competência profissional, existe um facto, porém,
sobre o qual gostaríamos de reflectir digamos, academicamente.
O facto é este, um dos
agora promovidos é oriundo do Serviço de Administração Militar.
Ora isto levanta
questões no campo dos princípios e da doutrina do Comando Militar.
É certo que o actual
EMFAR permite, pelo menos desde 1974, que um oficial desta «especialidade»
possa ser promovido, em «situações excepcionais», a general de três estrelas
(Art.º 197-4, do actual «emfar»).
E, de facto, de uma
excepcionalidade se trata, dado que no Exército, só são conhecidos três casos
anteriores a este: o do general Vergas Rocha promovido em 1 de Abril de 1981, a
fim de ir ocupar o cargo de chefe da divisão de Administração e Finanças, do
EMGFA; do general Victor Mesquita promovido em 4 de Janeiro de 1989, para
desempenhar as funções de chefe do departamento de Finanças do EME e do brigadeiro
Costa Alves, do Serviço de Material, promovido a três estrelas, em 5 de Março
de 1980, para ir ocupar o cargo de director-geral de Armamento (salvo erro).
Promoções que geraram
alguma controvérsia.
Excepcional também,
porque na Força Aérea e na Marinha, a promoção a oficial general de três
estrelas estar reservada, respectivamente, aos pilotos aviadores e aos oficiais
oriundos da classe de Marinha.
Cada um destes Ramos
tem, porém, uma excepção à regra: a FA através da promoção do brigadeiro Rui
Espadinha a três estrelas, em 11/8/82, sendo do quadro de engenheiros
aeronáuticos; a Armada, através da promoção a vice-almirante de um oficial
oriundo da Administração Naval, de seu nome Alfredo de Oliveira.
O primeiro era bem visto
pelo general Lemos Ferreira, tendo sido director das Oficinas Gerais de
Material Aeronáutico; o almirante teve a sua promoção em 1 de Abril de 1981, e
bem relacionado com o almirante Sousa Leitão, e foi desempenhar funções no
EMGFA.
Como curiosidade resta
acrescentar que os três oficiais do Exercito, de Administração Militar
mencionados, frequentaram o Instituto Militar dos Pupilos do Exército, o mesmo
se passando com o actual CEME.
A questão não é
pacífica, sobretudo no seio dos oficiais cuja especialidade, classe ou serviço
os impede de ultrapassarem as duas estrelas.
Mas estes assuntos
raramente são discutidos…
Os cadetes destinados a
estes quadros eram, aliás, avisados quando frequentavam a Academia Militar, a
Academia da Força Aérea e a Escola Naval (até antes), do topo da hierarquia a
que poderiam aspirar.
As próprias disciplinas
que lhes davam acesso, nomeadamente a Administração Militar, eram diferentes
das outras.
Alguma formação comum e
frequência de cursos de promoção em conjunto, há cerca de duas décadas,
acaloram o debate.
Outro tipo de
divergência (ainda mais grave) – a talhe de foice – tem ocorrido na GNR, com o «forcing» de oficiais cuja formação não
foi feita na Academia Militar, quererem ter acesso ao generalato, o que tem
sido (mal) apoiado por políticos do MAI, por razões que não vamos agora aduzir.
A Força Aérea, por seu
lado, tinha aberto uma outra «excepção», quando decidiu promover oficiais dos
quadros técnicos, a coronel, nos idos dos anos 80, quando até então, apenas
podiam ser promovidos a tenente-coronel.
A estes oficiais também
lhes estava vedado comandar unidades, mas houve numerosas excepções.
Também se passou a
nomear oficiais que não eram das Armas para cargos de Adidos de Defesa/Militar,
nomeadamente oficiais do quadro de Administração Militar e Aeronáutica, e até
se nomeou um oficial fuzileiro, não oriundo da Escola Naval, o que era anti-regulamentar
e deu origem a um conflito com o MNE.
Curiosa e significativamente,
os países para onde estes oficiais eram (e são) nomeados situam-se em África…
Em síntese as excepções
são muitas – o que levanta a questão de porquê uns e não outros – tendo a
atenuá-las, razões de falta de pessoal e de, em determinado período, permitir o
descongestionamento nas promoções de alguns quadros, que estavam inflacionados
de oficiais por via das necessidades da guerra terminada nos idos de 1974/5.
Mas voltando à questão
anterior o princípio doutrinário a preservar (se é que tal e pode considerar um
princípio doutrinário – e que nos parece estar certo – é o de que quem combate,
comanda.
E quem combate, no
Exército, são os oficiais (só estamos a falar destes) das Armas (Infantaria,
Cavalaria, Artilharia, Engenharia Militar e Engenharia de Transmissões – e
sabe-se a controvérsia que houve para passar esta última, a «Arma») e não os
dos serviços («que apoiam») como é o caso do Serviço de Saúde, o Serviço de
Material e o Serviço de Administração Militar, cujos oficiais são formados na
Academia Militar.
Por isso, para além do «Comando»
existe a «Direcção» e a «Chefia».
Dito de outra forma,
quem deve comandar são os oficiais que, sendo oriundos de uma Academia Militar
– é para isso que elas existem – estão na «linha de emprego» dos meios e não os
que estão na «linha de sustentação» dos meios. Estes últimos dirigem e chefiam.
Mas porquê, perguntarão
ainda os mais relutantes? Pois porque o combate é o fim último da preparação
militar e só quem está treinado para o mesmo, está em condições de entender e
abarcar as envolventes e as prioridades da complexidade do campo de batalha.
Senão, pela mesma lógica
que agora foi utilizada, poderíamos um dia vir a ter como chefe de
Estado-Maior, um oficial com a especialidade de médico.
Lembra-se que os
veterinários (por enquanto) apenas podem ascender a tenente-coronel…
E agora que temos um
general de três estrelas de Administração Militar nada obsta a que não possa
ser o futuro CEME…
Ou então, porque não, um
qualquer membro da comissão parlamentar de Defesa poder vir a ser chefe de Estado-Maior.
Porque não? Dá-se-lhes uns créditos, pim, pam, pum, já está!...
Não digam que não é
possível, pois eu já vi de tudo o que nunca esperava ver e até já tivemos em
época de suprema rebaldaria, um capitão graduado em general de três estrelas, comandante
da Academia Militar!...
*****
Sabe-se que o oficial
agora em causa foi escolhido por, entre os possíveis, ter o perfil mais
adequado para uma determinada função: o Comando Logístico.
Não contestamos a
apreciação e deverá, infelizmente ser o caso, sabendo-se quem fez a escolha.
Mesmo assim, por uma
questão do tal «princípio» e da tal doutrina (que pelos vistos não existe) a
decisão deveria ter sido ponderada de outro modo.
E aqui levanta-se uma
outra questão: é certo que cada um de nós pelas suas experiências, gosto e
saber, estará melhor numa determinada função do que noutra, e tal não deixa de
ser verdade no âmbito dos oficiais generais.
No entanto, ao nível que
estamos tratando (e um general é um «generalista»), qualquer oficial general
(das Armas) deve poder ocupar seja que função ou comando exista. E não há
muitos. E tal tem muito a ver com as promoções feitas anteriormente.
Também é verdade que há,
hoje em dia, muito poucos oficiais generais de três estrelas e que o tempo de
permanência no posto não é dos mais alargados (ou seja há pouco por onde
escolher), mas isso levar-nos-ia a outras discussões.
Algo que também afecta o
«status quo» é a existência do posto
de brigadeiro general.
Esta «novidade» não nos
parece ter sido boa ideia.
Começou por ser ideia do
Exército, tendo sempre a oposição da Marinha e Força Aérea.
A «racional» tinha a ver
com os cargos e funções NATO e, eventualmente outros, que eram ocupados por um
oficial desse posto (general de uma estrela), e «nós» não podermos concorrer a
tais lugares por não termos esse posto nas nossas fileiras.
Com o devido respeito a
argumentação não convencia, nem convence. Em primeiro lugar porque havia muito
poucos cargos desses a que poderíamos concorrer; depois porque se tal fosse
julgado de importância maior, facilmente se poderia enviar um coronel ou
capitão de mar-e-guerra tirocinado, ou, mais facilmente se poderia graduar um
qualquer oficial desse nível naquele posto.
Além disso o leque de
postos em oficial general passou a ser de quatro (mais do que no âmbito dos
oficiais superiores) numas Forças Armadas a caminho da extinção.
Tanto se andou nesta
discussão do sexo dos anjos, que a proposta acabou por ser aprovada (confesso
que não tive pachorra para ir saber em que moldes, nem quando), algures pelo
início do século XXI, o que logo foi aproveitado pelos políticos para se
diminuir o número de oficiais de duas e três estrelas transformando a pirâmide
num paralelepípedo irregular, poupando uns trocos e fazendo um «downgrading» de várias funções.
Consequências espúrias
que normalmente não se prevêem…
*****
Ora onde queremos chegar
é que no âmbito tratado – como em tantos outros – haja princípios e doutrina,
no seio dos Ramos (e não se ponham, deslumbrados, a copiar acriticamente um
exemplo qualquer do que se passa «lá fora»), pois há questões que são, por
assim dizer, pilares onde assenta o funcionamento da Instituição Militar.
Ora o Comando e a
Liderança são o fulcro de toda a actividade militar.
Isto é, aquilo que for
considerado importante tem de estar escorado e aceite solidamente, a fim de que
as questões fundamentais sejam tratadas de um modo racional. Neste âmbito o «EMFAR»
parece ter excepções a mais…
Mais uma vez se frisa a
necessidade de preservar princípios; mudar a doutrina só depois de reflexão
aprofundada e ser flexível quanto a estratégias, tácticas e técnicas.
Em conclusão as grandes
decisões nas Forças Armadas têm que estar sustentadas em princípios e doutrina;
a coerência tem que acompanhar toda a estrutura; idem para Leis e Regulamentos
e as excepções, elas próprias, só existirem excepcionalmente, para que as
coisas, as decisões e as pessoas não andem ao livre arbítrio de quem ocupa
transitoriamente uma função ou cargo; ao alvedrio de amizades ou ao interesse
do momento.
Resumindo: deve-se
definir muito bem quem e porquê pode atingir o topo da hierarquia e tal não
deve dar azo a excepções, por incompatibilidade manifesta. E não dar a parecer
que a Instituição Militar é uma manta de retalhos.
[1] II Suplemento, Série
I, de 2019-01-09, 11773162, do DR n.º 6/2109.