Helena Matos
Centenas de jovens afluíram ao Centro Comercial
Vasco da Gama, em Lisboa, numa acção convocada através do facebook.
O objectivo seria manifestarem-se contra o racismo.
Geraram-se confrontos entre grupos rivais de
jovens.
Algumas lojas fecharam com receio de desacatos.
A PSP foi chamada.
Dois jovens foram acusados de resistência e coação
a agente de autoridade.
Duas raparigas foram acusadas de posse de arma branca
utilizada durante o roubo de um telemóvel e uns óculos a uma menor.
Um rapaz de 15 anos sofreu ferimentos provocados
por uma chave de fendas.
Cinco agentes ficaram feridos.
Tendo em conta a juventude dos intervenientes, a
presença da polícia (que, note-se, acabou com cinco agentes feridos) deve ser
agradecida por todos, a começar pelas famílias dos jovens, pois nestas idades a
distância entre um desacato e uma tragédia é uma linha finíssima. Mas há um
problema: os jovens seriam maioritariamente negros e aí o desacato deixa de ser
um desacato e torna-se um problema racial. Os polícias deixam de ser forças da
ordem e tornam-se agentes da opressão. Os lojistas deixam de sofrer prejuízos e
passam a símbolos da intolerância. Os jovens deixam de ser jovens em idade
parva e com propensão para o disparate como são todos os jovens daquela idade
para se tornarem em vítimas da discriminação e, por fim mas não por último, os
jornalistas redigem as notícias sobre os factos com pinças não venha de lá a
acusação de racismo. Por último vem como não podia deixar de ser o comunicado
da associação que diz lutar contra o racismo. No caso a SOS Racismo.
O comunicado a denunciar o racismo é hoje uma peça
incontornável. Segundo os jornais os acontecimentos do Vasco da Gama valeram a
seguinte apreciação ao SOS Racismo: «São inúmeras as situações de aglomerados
de jovens por todo o país, em particular em período de férias de Verão,
são vários os furtos em espaços públicos e muitas as discussões e altercações
que não ocasionam nunca nenhuma intervenção policial tão violenta como aquela
ocorrida no Centro Comercial Vasco da Gama. E portanto, a única diferença deste
caso residiu na cor da pele dos jovens que ali se encontravam.» Não sei onde
viu em Portugal o SOS Racismo as inúmeras situações em que centenas de jovens
confluem para um mesmo local, se envolvem em confrontos, alguns com armas
brancas – saberão que uma chave de fendas pode matar? – e praticam furtos até
que cansaditos desistem. Mas o que posso garantir é que qualquer pai ou mãe ao
saber que os seus filhos estão envolvidos numa situação dessas espera que a
polícia chegue a tempo de evitar o pior.
Mas o SOS Racismo vai mais longe e pergunta ainda
«O que leva a PSP a impedir a mobilidade de jovens e a utilizar a força, só por
serem negros?» E com esta pergunta chegamos ao cerne da questão: por eles serem
negros a intervenção foi diferente ou deveria ter sido diferente? O que me
parece que está subjacente a esta denúncia de racismo é na verdade uma
reivindicação de racismo sob a forma de uma tolerância condescendente. Aliás se
os envolvidos não fossem negros provavelmente estaríamos a discutir como foi
possível que a PSP deixasse que um jovem fosse agredido com uma chave de fendas
ou como é que as famílias não os conseguiram impedir de tais comportamentos.
Muito menos alguém perante desacatos provocados por grupos de brancos ou de
asiáticos se indignaria com o facto de a polícia procurar controlar as
movimentações de jovens brancos ou asiáticos pois sendo brancos ou asiáticos os
envolvidos dirigir-se a outros grupos seria uma absurda perda de tempo.
Mas como são negros não se discute nada disso. E
espera-se de facto que os factos sejam olhados com uma condescendência que não
é mais que racismo encapotado.
Esta condescendência é profundamente nociva pois na
verdade ela fomenta a segregação. Ao contrário de muitas das pessoas que vivem
exaltadas a denunciar discriminações e se indignam quando se pede que a polícia
intervenha perante este tipo de comportamentos, utilizo os transportes públicos
e matriculei os meus filhos em escolas públicas. Vi e vejo serem toleradas
atitudes erradas, agressivas e ofensivas simplesmente porque são praticadas por
ciganos, negros ou aquilo que em França se vai conhecendo como «les petis
blancs». Vi e vejo as pessoas a mudarem de lugar no autocarro, a mudarem os
filhos de escola, a deixarem de ir a uma determinada praia… Nunca se
interrogaram porque são negros os seguranças dos supermercados nos bairros da
periferia? Porque a eles ninguém os acusa de racismo quando proíbem um
determinado cliente de entrar ou lhe pedem para abrir o saco antes de sair.
Sacrificado o serviço militar obrigatório no altar
do alegado pacifismo, escaqueirada a escola pública em nome da pedagogia, não
sobram além dos estádios de futebol e de alguns centros comerciais muitos
espaços onde os filhos dos portugueses se cruzem independentemente da sua
origem social e étnica.
O fim do marxismo levou a uma substituição das
questões de classe pelos assuntos identitários. E assim, onde antigamente
estava a luta de classes estão agora as comunidades. E tal como há quarenta
anos os filhos da burguesia gritavam contra a sociedade de classes e as
universidades se enchiam de estudos sobre a relação entre o marxismo e a
linguística, o marxismo e a filosofia, o marxismo e a história, agora outros,
nascidos em berço igualmente acomodado, estudam as questões de identidade das
diferentes comunidades que paulatinamente substituíram a noção de classes. Em
torno da luta contra a exclusão real e imaginada de cada uma das várias
comunidades em que a sociedade está fraccionada foi criado todo um imaginário,
uma linguagem, um acervo de teses, congressos, seminários, estudos,
observatórios e um mundo de activismos.
A abordagem a cada comunidade varia no conteúdo mas
nunca na forma: a comunidade é identificada enquanto tal sempre que é vítima,
os seus comportamentos mais excêntricos ou mesmos contrários às leis do país –
veja-se o caso dos direitos das mulheres entre os muçulmanos ou a expressão do
ódio racial entre algumas dessas comunidades – são tidos como naturais ou uma
reacção aos dominadores. Os actos condenáveis ou criminosos de alguns dos
membros da comunidade são apagados. E assim chegamos ao paradoxo de os mesmos
jornais que denunciam os problemas das famílias ciganas no acesso à habitação
omitirem a condição cigana de alguns dos envolvidos na exploração de alcoólicos
e doentes mentais. Se isto não é racismo o que é racismo? Aliás não me recordo
que as associações que lutam contra o racismo tenham denunciado a presença de
famílias ciganas na captação de mão-de-obra escrava para o sector agrícola em
Espanha. Mas nunca é tarde para se fazer o primeiro comunicado.
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