Morreu o comandante Alpoim Calvão. Soube da
sua morte através do António Lobato, o piloto que passou mais de sete anos
preso na Guiné Conakry e que foi libertado na Operação Mar Verde. Facto que,
durante anos, não pôde contar a ninguém. Parece-me uma boa altura para recordar
a história do António Lobato, o primeiro piloto português a despenhar-se na
Guiné, e a sua aventura até à libertação. O testemunho dele faz parte do
livro Dias de Coragem
e Amizade. A
fotografia é do Rafael G. Antunes.
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«Disse à minha mulher: não te preocupes que qualquer dia eu volto» |
Meia hora depois de chegarmos lá apareceu
um rapaz, radiotelegrafista, que só lá estava porque de vez em quando passavam
por ali os P2V5 que saiam do Sal. Ele sabia que íamos chegar e foi buscar-nos
num jipe. Apresentou-se e levou-nos para Bissau. Só havia um hotel na cidade –
que estava cheio, tal como todas das pensões porque o pessoal tinha saído todo
do mato e queria ir embora. Acabámos por dormir num colchão no chão do quarto
dele. No outro dia corremos a cidade à procura de outro sítio e não conseguimos
nada.
À hora de almoço
sentámo-nos no café Portugal a beber uma cerveja. Foi a primeira vez que vi uma
de litro e meio. Estávamos a conversar quando um senhor que estava na mesa do
lado nos interrompeu e perguntou se éramos da Força Aérea. «Ouvi a vossa
conversa, estão aflitos? Quando acabarem de beber têm disponibilidade para vir
comigo?» Dissemos que sim, e seguimo-lo em direcção a uma vivenda ao cimo da
avenida principal, onde ele nos explicou: «Sou reitor do liceu, mas vou-me embora
para a semana. Já mandei a família para Portugal.» Deu-nos uma chave a cada um
e foi assim que arranjámos alojamento. Ficámos ali uns dois ou três meses.
Depois fomos apresentar-nos ao palácio do
governo. Como todas as semanas havia um avião para transportar as pessoas que
queriam vir embora e não havia controlo ele pediu-nos para tomar conta dos
embarques. E assim foi. Havia quem nos oferecesse dinheiro para passar à frente
das listas. Recusávamos sempre e no final dos embarques íamos levar um saco cheio
de notas ao palácio. Aquilo funcionou assim.
Passados três ou quatro meses lá apareceram
dois aviões empacotados no porto de Bissau. Como, entretanto, tinham chegado
dois mecânicos, combinámos ir buscar um para o montar só com as ferramentas que
eles tinham na mala. No final, faltava uma chave grande para colocar a hélice.
Fomos às oficinas navais e o mecânico fez-lhes o desenho do que precisava e
eles fizeram uma. Foi assim que começámos a voar para conhecer o território
porque as cartas que tínhamos não tinham cores. Fomos nós que as colorimos com
lápis.
Na época não tinha a noção
de que aquela seria uma guerra prolongada. Começou suavemente e foi aumentando.
A 22 de Maio de 1963 saí para uma operação na ilha de Como. Supostamente, nem
devia ter ido. Tinha chegado de Cabo Verde na tarde do dia anterior e entrei na
sala de operações quando estava a haver um briefing.
Como faltava um piloto, ofereci-me para ir no lugar dele. Estava a um mês de
acabar a minha comissão.
Ao chegar ao objectivo
senti qualquer coisa no avião. Devo ter sido atingido por uma bala. Disse ao
meu asa que ia sair dali e pedi-lhe que se pusesse debaixo de mim para ver se
havia algum dano na zona do trem de aterragem. Foi o que ele fez. Mas quando
temos outro avião por cima é preciso cuidado para não sermos sugados. Não sei
se foi por falta de experiência, distracção ou apenas por estar a olhar para
cima, mas, quando dei por isso, ele estava a passar-me à frente, encostado ao
motor. O avião começou a tremer e tive de o desligar. Ainda lhe dei dois ou
três gritos para que endireitasse o avião mas ele foi a pique e lá ficou.
Vi uma clareira e não me
ejectei. Achei que era capaz de lá meter o avião. Aquilo era um campo de arroz
e ao aterrar as saliências das metralhadoras e dos rockets encaixaram nos
sulcos e as duas asas saltaram como se fossem arrancadas à mão. A fuselagem deu
duas ou três cambalhotas e saí de lá ileso. Só tinha o relógio esmagado. Olhei
à volta e vi um grupo de indígenas a uns 50 metros a olhar para mim,
espantados. Fui direito a eles. Estavam todos de catanas na mão. Sabia que
Catió era numa determinada direcção e perguntei se algum me podia indicar o
caminho que, quando lá chegasse, até lhes pagava.
No topo da clareira havia
uma aldeia escondida. Caminhámos para lá, a conversar. Mas antes de chegarmos,
levei uma catanada que me abriu a cabeça ao meio. Sem dizerem mais nada caíram
todos em cima de mim. Arranjei forças não sei onde e consegui fugir para o
mato. Ainda estive uns 10 minutos escondido. Atei um lenço à cabeça para tirar
o sangue dos olhos e fiquei à espera. Houve um que apareceu. Ficámos a olhar um
para o outro. Eu peguei na minha faca de mato e levantei-a. Ele disse: «Dá a
faca». Nestas alturas há alguma coisa que nos diz como devemos decidir. Sei que
a virei e atirei-a. Ele deu um grito e lá veio a outra rapaziada toda. Saímos
do meio das lianas e voltaram a dar-me uma série de catanadas, uma delas nas
costas. Ainda estão marcadas. Depois levaram-me para aldeia. Pelo caminho
foram-me tirando a roupa, anéis, o fio que trazia ao pescoço. Estavam a
preparar-se para me linchar quando chegaram dois guerrilheiros. Foi a minha
sorte.
Mandaram-me sentar e
perguntaram-me o que se tinha passado. Depois disseram-me para descansar porque
íamos partir à noite. Antes quiseram saber se tinha fome. Depois mandaram os
aldeões subir a uma mangueira e eles começaram a atirá-las cá para baixo. Nunca
comi tantas mangas na vida. Foram dezenas. Tinha perdido imenso sangue. Logo
depois, adormeci. Só acordei à noite, quando me chamaram. Andámos a pé uma
semana até chegarmos à zona onde estava o Nino Vieira, que era o comandante da
zona sul. Ele disse-me que tinha tido sorte: a ordem do Amilcar Cabral para
fazer prisioneiros só tinha chegado há 15 dias. De qualquer forma tinha poder
para me fazer o que quisesse. Perguntou-me:
— Tens família?
— Tenho.
— Queres escrever-lhe
uma carta?
— Para quê? Isto nunca
mais lá chega.
— Como quiseres.
Depois tirou um bocado de
papel e uma caneta e deu-mas. A minha mulher tinha vindo para a Guiné em 1962 e
resolvi escrever umas oito linhas a dizer: «Não te preocupes que qualquer dia
eu volto.» E um mês depois ela recebeu-a. Por volta das 22h, um guerrilheiro
entrou-lhe em casa, em Bissau, cansadíssimo. Perguntou-lhe se tinha leite,
bebeu uns dois litros e entregou-lhe a carta.
Nessa altura já devia estar
na Guiné Conakry. Fui num barco que eles apanharam à Casa do Comércio, o
Bandim, para Vitória. Estava lá um curandeiro que decidiu tratar-me. Tirou-me o
lenço e lavou-me a cabeça com álcool ou qualquer coisa parecida porque isto
nunca mais sangrou. Nas costas ainda tinha um golpe aberto por uma catanada.
Disse-me: «Vamos coser isto». Deitou-me numa marquesa e deu-me uma garrafa de
vinho para custar menos. Bebi. Era bom, português. Ele lá me coseu com uma
agulha de coser sacos. Chega-se a um ponto na dor em que já não se sente nada,
passa-se para o outro lado. O certo é que aquilo resultou. Nem sequer infectou.
Levaram-me para Conakry,
onde chegámos a um domingo. Estava tudo fechado. Passei a noite numa cela imunda
do comissariado da polícia e só no dia seguinte foram buscar-me para responder
a umas perguntas. Queriam que fosse à Rádio Argel dizer que aquela era uma
guerra injusta e não sei que mais. Prometeram-me que ia para um país de Leste e
tudo. Disse que não. Identifiquei-me e pronto. Fiquei ali mais 15 dias até me
meterem num carro e arrancarmos para a prisão de Kindia, 150 km para o
interior, onde fiquei os seis anos seguintes.
Estava numa cela de três
metros por dois. Sozinho. Comecei logo a planear uma fuga. Anos depois, graças
a um guinês cheguei a ter três ferros da grade cortados. Ele era funcionário do
tesouro antes da independência e depois continuou nas mesmas funções. Só que em
vez de enviar o dinheiro para contas da Guiné em França, mandava para a dele.
Ele tinha estado no Brasil e falava português. Odiava aquela gente toda.
Através da mulher, que ia visitá-lo de 15 em 15 dias, ofereceu-se para enviar
notícias para cá. Conseguiu passar-me papel e lápis por baixo da porta e eu
escrevi. As cartas iam para uma irmã dele na Guiana Francesa e daí para
Portugal. Acabei por receber um livro que pedi à minha mulher, fiz um código
com base nele – uma página era uma letra – e continuei a mandar informações. A
mulher trouxe-me uma serra de cortar ferro e estive meses a cortar as barras, à
noite, até ser apanhado.
Aquilo tinha 400
prisioneiros de delito comum, que faziam trabalhos forçados todos os dias.
Nunca lá entrou um médico. Eu era o único branco. Ao fim de dois anos comecei a
ir ao recreio por uma hora, mas sozinho. Nunca me bateram, nem quando me
apanharam a tentar fugir. Insultaram-me e mais nada. Até quando as nossas
tropas entraram na Guiné Conakry foi lá um ministro que mandou abrir a porta,
mas só para me insultar. A certa altura chegou lá um soldado português que, ao
fim de um ano e meio e foi libertado através da Cruz Vermelha. Quando cá chegou
disse à minha mulher que eu nunca mais de lá saía porque dizia que, quando isso
acontecesse, os bombardeava. Não era nada, mas ele disse isso.
Depois chegaram mais dois,
que ficaram comigo um ano. Nos primeiros tempos não podíamos falar. Eles
estavam numa cela, eu na outra. Fazíamos sinais. Quando passaram a deixar-nos
ir juntos ao recreio começámos a planear uma fuga. Isto ao fim de seis anos.
Começámos a ver que havia certas rotinas. Os guardas deixavam a cela aberta
para um pátio e à noite havia um grupo que ao dar-nos o prato de arroz nem
olhavam lá para dentro. Um dia, não voltámos à cela. Entrámos para dentro de um
depósito de água e ficámos à espera da hora da prece – quando também começava a
anoitecer. Nessa altura saltámos dali para fora e andámos oito dias pelo mato a
alimentar-nos de tudo o que aparecia.
Uma noite, tivemos que
andar um bocado pela estrada porque não tínhamos outra hipótese. Meia dúzia de
quilómetros depois apareceram uns 10 tipos enormes, sem armas, todos vestidos
de branco, de saia até aos pés. Eram Fulas.
— Portuguesi?
— Não.
— Ahhh portuguesi.
Vamos embora.
— Não, não.
— Ahhh portuguesi,
está tudo bem.
Chegámos a uma aldeia e nem
se preocuparam connosco. Foram rezar e as mulheres encheram umas cabaças de
arroz e carne. Chamaram-nos para comer e nós lá fomos. Depois levaram-nos para
uma cidade onde havia polícia. O militar perguntou-nos: «Vocês fugiram, tudo
bem, é esse o dever de um prisioneiro. Não há problema. Mas vão ter de me dizer
como conseguiram.» Respondi-lhe que era «mezinha de branco». Até hoje não sabem
como escapámos.
Quando chegámos à prisão,
tinha o director na minha cela. Estava ali porque se eu não aparecesse ele
tomava o meu lugar. Era assim. Passados uns dias os homens do PAIGC levaram-nos
para Conakry, onde estavam mais de 20 prisioneiros nossos. Se não tivéssemos
tentado escapar se calhar não tínhamos ido para lá e acabávamos por não ser
libertados: a operação Mar Verde foi nesse ano.
A altas horas da noite
começámos a ouvir tiroteio que se afastava e aproximava. A dada altura caiu uma
bujarda em cima da prisão. Deitei-me encostado à parede até alguém abrir um
rombo na parede e gritar «Lobato». Era o tenente fuzileiro Cunha e Silva. O
instinto fica tão apurado que parece que vemos e adivinhamos tudo. Perguntou-me
pelos outros que estavam na outra ponta da prisão. Foram buscá-los e
continuámos direito aos barcos.
Quando cheguei a Portugal
só pude ver a família ao fim de oito dias. Fui levado para Caxias e fiquei
guardado por dois pides. Não se podia divulgar que tínhamos estado em
território da Guiné Conakry. Antes de ir à televisão tive de assinar um papel a
comprometer-me em dizer que tínhamos fugido. Os ministros foram ver a gravação
e depois de confirmarem que estava tudo bem é que me deixaram ver a minha
mulher. «Tinham passado mais de sete anos.»
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