ENTREVISTA AO GENERAL GARCIA LEANDRO
SOBRE OS
ACONTECIMENTOS NO EXÉRCITO.
(PEDRO RAINHO, OBSERVADOR)
O general Garcia Leandro
diz, em entrevista ao Observador, que se o CEME avisou o ministro da falta de
segurança, a culpa é do ministro. Se não o fez, a responsabilidade é dele.
O general
Garcial Leandro, 77 anos, foi vice-Chefe do Estado-Maior do Exército,
conselheiro de Portugal na NATO, comandante da missão das Nações Unidas no
Sahara Ocidental. Uma das lições que aprendeu na sua longa carreira militar
explica-se assim: a missão cumpre-se sempre, até se pisar a linha vermelha. No
assalto ao armamento de guerra de Tancos, essa linha foi ultrapassada quando
se encarou como «rotina» uma fragilidade na segurança que
esteve dois anos para ser resolvida e que abriu a porta ao furto do armamento.
Se tem um responsável em mente para o que se passou no parque de paióis de
Tancos, Garcia Leandro não assume, mas diz: «Se o CEME alertou o
ministro para as consequências graves que esta situação tinha, o responsável é
claramente o ministro. Se não alertou, a responsabilidade é dele.»
— Dizer que tem havido
outros assaltos do mesmo género que o de Tancos em países como França ou
Estados Unidos retira alguma gravidade ao que se passou na semana passada?
— Não, para mim, não tira. O que se passou em Tancos é uma coisa, o resto
é outra. Com o mal dos outros estou eu bem.
— Então de que serve
este argumento usado pelos responsáveis políticos?
— Existe para dizer que não é caso único, mas o que me preocupa é este
caso, este país, com todas as consequências que isso tem em termos de segurança
para as populações e para a imagem do país no exterior.
— Está-se a dar
demasiada importância ao que aconteceu em Tancos?
— Não, não está. Isto é muito grave.
— Já
disse que isto não podia ter acontecido.
— Não podia. A segurança nos depósitos de material de
guerra sempre foi uma das preocupações das autoridades militares. Os paióis
sempre foram uma grande preocupação. Isto é algo que nunca aconteceu na minha
vida. Por todos os sítios por onde andei em guerra e, sem ser em guerra, em
missões internacionais… Para uma coisa destas são precisos lapsos, asneiras,
limitações grandes de meios.
— O
que revela este assalto?
— A minha abordagem não tem nada de corporativo ou pré-partidário, não tem
pré-posições a esse respeito. É só uma questão de interesse nacional e de
avaliar o que se deve fazer para correr bem. Há aqui três ou quatro aspectos
enquadrantes. Um deles é a cultura militar, que é fazer sempre a missão, mesmo
com cortes de meios. Imagine: tem um orçamento de 100 mil euros e faz a missão.
Cortam 10 mil, faz. Cortam mais 10 mil e faz. Até que a casa cai. A cultura é
tentar sempre cumprir a missão.
— Sempre?
— Há momentos em que, como avisei várias vezes, a casa
pode cair, o castelo de cartas vai abaixo. Há uma linha vermelha que não se
pode ultrapassar.
—
Neste caso, foi passada a linha vermelha?
— Isto já vem de trás, é um acontecimento que não se esperava. Acontece
também que, do ponto de vista do sistema de Governo, houve uma grande
alteração. Mesmo no tempo do professor Salazar e de Marcelo Caetano, os
ministros mandavam nos ministérios. Tinham muito ou pouco dinheiro, mas o
ministério era piramidal. O ministro estava no topo e tinha o seu dinheiro. De
há 15 anos a esta parte, com a evolução da tecnologia e com a necessidade de
controlar as finanças, o Ministério das Finanças entra, transversalmente, nas
direcções gerais todas. Entra, corta, tira e põe. Os ministros não mandam, têm
uma falta de poder muito grande. Até pode haver uma grande compreensão daquilo
que são as necessidades da sua área, mas têm de negociar isso com o Ministério
das Finanças. As Finanças têm uma acumulação de assuntos que, tendencialmente,
fazem paralisar a máquina e, por outro lado, obrigam os ministros a negociar
caso a caso. É um drama permanente.
— Essa
intervenção das Finanças deve ser limitada?
— Há assuntos, tais como a segurança nacional que não podem ser tratadas
dessa maneira. Não estamos a falar de ter ou não ter papel A4.
— Isso
exige que na tutela esteja um ministro com poder político.
— Tem de ter poder político e compreensão, não pode ter uma posição em que
diz que está ali para dar ordens. (...)
(...)
— Estávamos a falar de
linhas vermelhas. Como é que esse princípio se aplica ao assalto a Tancos?
— As chefias militares das Forças Armadas têm missões para cumprir e essas
missões têm de ter meios, uma estrutura, orçamento, pessoal. Na questão dos
paióis, o que se passou é que, no tempo do dr. Aguiar Branco, o corte de meios
em pessoal, em finanças e em material foi muito, muito, muito grande. As unidades
ficaram muito reduzidas de meios, nomeadamente humanos.
— Ao ponto de já não se
poder cumprir a missão?
— Isso não sei responder. Mas alguém há-de saber responder a isso. Este
Governo ainda não conseguiu inverter isso. Agora, temos de ter a noção de que
vivemos num tempo de paz e de calma, mas o mundo não vive. Nós estamos aqui
relativamente tranquilos mas o mundo não está. Temos de estar preparados para
qualquer situação de imprevisibilidade em que tenhamos de responder no âmbito
da segurança nacional, da segurança na aliança Atlântica, em que temos o nosso
papel, dentro da UE, dentro da CPLP, dentro da ONU e queremos sempre tomar
parte disso. Mas não podemos fazê-lo deixando o interior do país, as ilhas e o
mar completamente desprotegidos. Quando chegamos à questão dos paióis, a
localização daquela estrutura obriga a que tenha uma segurança óbvia, até
porque é a zona onde há mais meios militares. Se os meios militares baixarem
até um determinado nível, a partir de certa altura não se pode garantir a
segurança.
— Os dados que foram
conhecidos indicam que a segurança naquela infraestrutura estaria a cargo de 10
militares.
— Mas não foi sempre
assim, já foram 30. E 30 não é a mesma coisa que 10, independentemente da
videovigilância, porque em 1980 não havia videovigilância. Mas o mundo também
era diferente. Isto de se fazerem assaltos a estes locais não existia.
— Portugal não acompanhou
essa evolução em termos de segurança?
— Por um lado, tivemos os
cortes no orçamento e no pessoal. Por outro lado, tínhamos o sistema de
videovigilância que estava obsoleto e ia ser substituído. Onde é que está a
falha? A falha está em dizer que determinado equipamento não está em condições,
que esse equipamento é vital e não pode ser sujeito à rotina da burocracia.
— Não se pode esperar dois
anos para intervir…
— Tem de
ser já. E aí é que o chefe militar tem de dizer que não se responsabiliza e
perguntar ao ministro se assume a responsabilidade. Tem de dizer que não tem
condições para fazer a segurança. Normalmente, quando as coisas são postas
assim, a resposta é positiva. As pessoas não querem ficar com a
responsabilidade em cima. Mas, historicamente, não são os ministros que ficam
com a responsabilidade em cima, são os generais e os almirantes. Situações de grande responsabilidade não podem ser
tratadas como situações de rotina, são situações excepcionais e não podem ter
uma decisão de rotina.
(...)
— O comandante do Exército
não deve ter essa capacidade independentemente das circunstâncias?
— Tem. E tem de avisar: «Olhe
que a partir de agora não garanto a segurança disto.» E admito que tenha
avisado. Agora, não sei de quem é a responsabilidade.
(...)
— Fica a sensação de que
está tudo refém dos inquéritos. Não há tomadas de posição pessoais sobre as
falhas, não se assume responsabilidade e não se tiram consequências se não
houver um inquérito que atribua essa responsabilidade.
— O CEME acha que estava a
fazer o melhor que podia com a segurança dos depósitos de material de guerra.
Não tenho dúvidas de que isso é verdade, mas dentro de uma linha de rotina. Não
numa linha de situações excepcionais. Nessa linha de situações excepcionais,
não respondeu. No mecanismo de pensamento militar, em todas as situações têm de
se ver as hipóteses, as chamadas modalidades de acção: qual é a modalidade mais
perigosa e qual é a mais provável. Neste caso dos paióis, tinha de se fazer um
cuidadoso misto. Julgo que nunca acreditaram na possibilidade de aquilo ser
assaltado. Porque se tivessem acreditado o esquema montado teria sido
diferente.
— O senhor
tem um responsável identificado, só não quer apontá-lo.
— Pode
deduzir isso do meu pensamento, mas eu não sei qual é o responsável. Porque se o CEME alertou o ministro para as
consequências graves que esta situação tinha, o responsável é claramente o ministro.
Se não alertou, a responsabilidade é dele.
(...)
— António Costa tem de
intervir directamente neste processo?
— Ele está no topo do
executivo.
— Em Setembro morreram
dois instruendos do curso de Comandos e, nesse momento, o CEME não suspendeu
nem exonerou qualquer responsável militar. O CEME devia ter agido?
— Não
lhe sei dizer porque a estrutura do regimento de Comandos obriga a vários
patamares de responsabilidade. Pode ter
acontecido que ao nível do comando tudo tenha sido bem feito e tenha sido mal
executado por outras pessoas. Nestas forças especiais, existe gente muito nova
cheia de vontade de fazer coisas e que depois exagera.
(...)
— Tancos não é a única
infra-estrutura com elevado grau de sensibilidade. Há outros pontos em que a
segurança possa estar comprometida e para que se deva olhar?
— Julgo que não é a minha
opinião que conta. Julgo que isso é imediato. Assim que isto aconteceu até o
senhor ministro se envolveu e disse que tinha de ser feita uma fiscalização
cuidadosa noutros paióis. No que respeita à dimensão e importância, os maiores
são os de Santa Margarida. Existe um depósito de material NATO, na margem sul,
mas é da NATO.
— O assalto a Tancos teve
grande repercussão internacional. A imagem do Exército fica fragilizada com
este episódio?
— Acho
que sim, o próprio CEME disse isso.
(...)
— E não podemos ficar a
perder na relação com os parceiros da NATO, parceiros europeus, etc.?
— O facto em si é muito
mau, mas daí a tirar consequências gerais para o futuro não creio que possa
acontecer.
— Que lição se deve tirar
de tudo isto?
— Nunca deixar passar a linha vermelha. É bom não esquecer isto: quem fica sempre com a
responsabilidade são os chefes militares. Os políticos passam, mudam, vão fazer
outra coisa, até podem ser substituídos, mas não ficam com a responsabilidade.
O chefe militar tem de ter o cuidado de não deixar entrar estas situações em
incapacidade de cumprimento.
— Fazendo esse alerta, e
não havendo a tal resposta por parte do poder político de que falava, o chefe
deve sair?
— Isso tem de ser
analisado caso a caso, pessoa a pessoa. Alertando, conforme a gravidade da
situação, então deve dizer que não contem mais com ele.
(...)
Sem comentários:
Enviar um comentário