Luís Pedro Nunes, Expresso, 30 de Setembro de 2015
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Foi com algum receio que ultrapassámos a porta do Cemitério Municipal de Bissau para visitar os talhões dos militares portugueses. Situa-se numa das zonas mais degradadas da cidade antiga. Na Guiné há cerca de 30 locais onde existem corpos de soldados portugueses mortos durante a guerra colonial. Alguns destes locais estarão ao abandono ou já não se sabe a localização exacta de certos corpos, como feridas que há muito sararam e não deixaram cicatrizes. Há histórias escabrosas de campas abertas, revoltas, profanadas pelo abandono e desinteresse de mais de quatro décadas.
Entra-se e, como sempre, é o verde do mato que sobressai. Fica-se a saber que há um responsável pelos três talhões de militares portugueses mortos. Logo à entrada, junto a campas sem nome, deparámos com duas placas de 2010 da Liga dos Antigos Combatentes, o que revelava ter havido ali alguma preservação recente. Mas a verdade é que grande parte do cemitério, lá para a zona do fundo, está destruído ou a ser «reciclado», isto é, reutilizado. Foi sempre um trauma não superado, uma história que não resolvemos — a dos nossos mortos deixados para trás, soldados enterrados nos quartéis que depois foram abandonados à pressa. Os familiares tinham que pagar 11 contos para os trazer para a Metrópole. Era muito dinheiro.
Deambular pelo cemitério é sempre um passeio errático, no meio de capim alto e mármore partido que se tem receio de pisar. Ao longe vem um homem a passo largo. Ainda há uns três anos, Bissau era conhecida por ser um local difícil para jornalistas. Não se conseguia trabalhar sem uma ou duas autorizações escritas de diferentes entidades superiores. E uma notinha em dinheiro para fazer o quer que fosse. Pois, isso acabou.
Aproxima-se aquele homem de cara fechada. Mão agarrada a um braço que perdeu.
— É o responsável aqui pelo talhão dos militares portugueses? (Abre-se um sorriso amigo.)
— Sou sim senhor.
Francisco Monteiro, 68 anos, antigo guerrilheiro do PAIGC, a pedido mostra o coto. Perdeu a mão em 1973, ao tentar devolver uma granada lançada pela tropa portuguesa. É ele o cuidador dos seus «inimigos» mortos em combate. Não há ironia nem poesia nisto. E, posso testemunhar, não há rancor.
— A guerra foi trabalho de Salazar, eles não tiveram culpa e ainda ficaram aqui.
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Francisco Monteiro, antigo combatente do PAIGC, junto às campas de soldados portugueses |
É preciso contextualizar este desencanto. Estamos no início de Setembro. O Presidente da República, inesperadamente, anuncia a demissão do primeiro-ministro e a decisão de formar um governo presidencialista que, alegadamente, quererá controlar. As pessoas ficam perplexas. O Governo era o resultado de uma eleição democrática efectuada há dois anos e que agora não se pode repetir por não haver financiadores externos dispostos a contribuir para caprichos de aparentes «meras» divergências de personalidades. Mais do que um total apoio ao primeiro-ministro — que até se sentia por todo o país — as pessoas afundaram-se num cansaço de instabilidade e receio de mais um golpe de Estado violento. As «coisas» tinham começado a funcionar. Aos poucos. Ninguém percebia as causas da demissão. Quer dizer, os boatos corriam. Todos eles metiam dinheiro. E temia-se que os militares só estivessem quietos devido à presença das forças das Nações Unidas. [Entretanto, Carlos Correia, de 81 anos, tomou posse como novo primeiro-ministro].
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Bissau, junto ao porto. |
Há 40 anos, Bissau era uma cidade com pouco mais de 70 mil habitantes. Hoje, estima-se que contará com quase meio milhão, um terço da população do país. Onde estão? Não no centro, mas nos bairros que abraçam a cidade, cheios de cor e animação. Alguns, curiosamente, estão pavimentados por alcatrão perfeito, ao contrário do centro. É aí, na periferia, que reside a verdadeira população de Bissau, deslocando-se nos «toca-toca» (carrinhas onde cabe sempre mais um), sujeita a todo o tipo de arbitrariedades da polícia para sacar algum dinheiro. Na Guiné ninguém fala em narcotráfico, narcoestado, embora haja quem fale por alto sobre isso, dizendo que «isso» mudou muito nos últimos anos. Para melhor. «Diz-se» que os americanos da DEA montaram cerco às águas e ao mar do arquipélago do Bijagós.Quando saímos do cemitério, demos uma nota ao «turra» maneta.
Quando íamos a entrar no carro vimos que ele estava a entregar a nota a uns tipos à porta do cemitério. Chamámos.
— Está a dar o dinheiro a outros? Porquê?
— Eles não têm mesmo nada.
(Pode parecer um final feliz meio arranjado.
Mas foi mesmo assim que aconteceu. Demos-lhe outra nota. E ele lá foi embora.)
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