BLOGUE DA ALA DOS ANTIGOS COMBATENTES DA MILÍCIA DE SÃO MIGUEL

segunda-feira, 29 de abril de 2019

JUSTIFICA-SE A POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR?

Miguel Machado,
Operacional, defesa, forças amadas e de segurança 30 de Setembro de 2018

Os recentes acontecimentos relacionados com o desaparecimento e a posterior recuperação do material de guerra dos paióis de Tancos, com alguma demagogia e oportuno aproveitamento têm servido de justificação para aqueles que de há muito pretendem a extinção da Polícia Judiciária Militar (PJM) e a passagem das suas atribuições e competências para a Polícia Judiciária (civil).
Intróito

Ora recordando apenas dois casos conhecidos ocorridos não há muito tempo, o do presidente do Instituto dos Registos e Notariado e o do director nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que foram presos e neste momento até já julgados e que se saiba, ninguém por esse facto veio pedir a extinção de nenhum daqueles organismos ou a passagem das suas competências para outras entidades.

Em inúmeras análises e debates televisivos e em diversos comentários na imprensa em geral vêm surgindo as dúvidas sobre a necessidade e até, pasme-se, a legalidade da existência da PJM.

É precisamente sobre a sua justificação que este pequeno texto versa, sem nada referir sobre as ocorrências de Tancos, responsabilidades ou culpabilidade de quem quer que seja, não deixando no entanto de apelar ao muito propalado princípio da presunção da inocência que para alguns casos é profusamente enunciado, mas noutros reiteradamente esquecido.

Polícia Judiciária Militar

A Polícia Judiciária Militar (PJM), a par da existência de Juízes Militares em todas as instâncias criminais e de Assessores Militares junto do Ministério Público (MP), com o Código de Justiça Militar (CJM), este enquanto fonte substantiva do direito militar, dão corpo ao Sistema de Justiça Militar constitucionalmente consagrado.

A Polícia Judiciária Militar é um órgão de polícia criminal (OPC) com competência específica para a investigação dos crimes estritamente militares.

Tem ainda competência reservada para a investigação de crimes cometidos no interior de unidades, estabelecimentos e órgãos militares.

Os demais órgãos de polícia criminal, devem comunicar de imediato à PJM os factos de que tenham conhecimento relativos à preparação e execução de crimes da sua competência, apenas podendo praticar, até à sua intervenção, os actos cautelares e urgentes para obstar à sua consumação e assegurar os meios de prova.

Contudo, tal não prejudica a competência conferida à Guarda Nacional Republicana (GNR) pela Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC) ou pela respectiva Lei Orgânica para a investigação de crimes comuns cometidos no interior dos seus estabelecimentos, unidades e órgãos.

Os efectivos militares necessários ao funcionamento da PJM são assegurados em termos a definir por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da defesa nacional e da administração interna, respectivamente para os militares das Forças Armadas ou da Guarda Nacional Republicana.

Podem ser nomeados para o desempenho dos cargos ou exercício de funções a que se refere o número anterior, militares dos quadros permanentes nas situações de activo ou de reserva na efectividade de serviço e militares em regime de contrato e de voluntariado.

A investigação dos crimes militares sempre coube a investigadores subordinados ao estatuto da condição militar, podendo recair sobre militares das FFAA ou da GNR, embora na dependência funcional do Ministério Público (MP), como não podia deixar de ser, porque pela natureza dos crimes e pelos bens jurídicos tutelados, a investigação dos mesmos deve ser da responsabilidade de um órgão que percepcione facilmente os interesses jurídicos em causa (interesses militares da defesa nacional).

É também esta a razão da existência de juízes militares nos tribunais que julgam os crimes de natureza militar, de assessores militares junto dos magistrados do MP na fase de inquérito e de uma secção especializada para a investigação deste tipo de crimes nos Departamentos de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa e do Porto.

Relembre-se o elenco dos crimes estritamente militares previstos no CJM para melhor se compreender a sua especificidade.

Crimes contra a independência e a integridade nacionais (art.º 25 a 37)

(Exemplos:

Traição à Pátria; Infidelidade no serviço militar (corrupção).

Crimes contra os direitos das pessoas (art.º 38 a 56)
(Exemplos: Incitamento à guerra; Crimes de guerra contra pessoas).

Crimes contra a missão das Forças Armadas (art.º 57 a 65)
(Exemplos: Capitulação injustificada; Actos de cobardia).

Crimes contra a segurança das Forças Armadas (art.º 66 a 71)
(Exemplos: Abandono de posto; Incumprimento dos deveres de serviço; Entrada ou permanência ilegítimas em instalações militares).

Crimes contra a capacidade militar e a defesa nacional (art.º 72 a 84)
(Exemplos: Deserção; Extravio, Furto e Roubo de material de guerra).

Crimes contra a autoridade (art.º 85 a 100)
(Exemplos: Insubordinação; Abuso de autoridade).

Crimes contra o dever militar (art.º 101 a 104)
(Exemplos: Ultraje à Bandeira Nacional; Evasão militar).

Crimes contra o dever marítimo (art.º 105 a 106)
(Exemplos: Perda ou Abandono de navio).

Os próprios crimes do foro comum cometidos no interior de instalações militares têm uma possibilidade de dano que extravasa o núcleo do bem jurídico que tutelam porque, em razão do lugar onde são cometidos estão conexionados com a vivência militar afectando valores de confiança e de disciplina interna das Forças Armadas e de outras forças militares.

A investigação dos mesmos por outro OPC que não o militar colidiria com questões operacionais e de segurança e seria prejudicial à coesão e à confiança da Instituição Militar.

A acrescer a estas razões, existe uma outra de natureza excepcional que se prende com a situação de guerra em que são criados tribunais militares que podem chegar a ser exclusivamente constituídos por juízes militares e em que o MP pode ser substituído por um oficial das Forças Armadas, onde seria no mínimo estranho que o OPC encarregue da investigação criminal fosse de natureza civil.

Na mesma linha de raciocínio se afigura completamente descabido que um crime cometido num qualquer TO no estrangeiro no seio das Forças Nacionais Destacadas (FND) viesse a ser investigado por um OPC que não tivesse a natureza militar.

Conclusão

A argumentação da duplicação de entidades de investigação criminal (PJM e PJ) não colhe, na medida em que o âmbito de intervenção de cada um destes OPC (quer em termos materiais – crimes estritamente militares; quer em termos espaciais – crimes cometidos no interior de instalações militares) não é o mesmo, para além do facto do nosso sistema de investigação criminal ter optado por um modelo de pluralidade de OPC.

Todavia para que o modelo funcione sem atropelos nem concorrências perniciosas é necessário que as atribuições e competências de cada um sejam respeitadas, e mesmo naqueles casos fronteira de possível indefinição, caberá ao titular da acção penal, o MP, a definição clara de qual o OPC indicado para a investigação.

A este propósito uma pequena nota, é que de acordo com o artigo 113.º do CJM, não pode haver conexão de processos de natureza estritamente militar e outros.

Mas mesmo que por absurdo se pretendesse a extinção da PJM, o mesmo não significaria a transferência das suas competências para uma estrutura civil dada a total contradição que essa solução representaria uma vez que no nosso país é bem clara a opção por um modelo dual, onde para além de polícias civis, permanece uma força de natureza militar, a GNR que por sinal é um OPC com mais de 1 000 militares qualificados com o curso de investigação criminal que actualmente detém competência para investigar crimes cometidos no interior dos seus quartéis.

Se de acordo com o estatuto da PJM os militares da GNR, a par dos das FFAA, podem integrar aquele OPC, a eventual extinção da PJM implicaria que a GNR passaria a ser o único OPC de natureza militar em que os seus elementos possuem o estatuto da condição militar, não se compreenderia a opção pela PJ (civil) para prosseguir as atribuições e competências da PJM no que respeita à investigação de crimes estritamente militares e dos crimes comuns praticados no seio de instalações militares.

Acresce que com recurso ao direito comparado, em todos os países do Sul da Europa e outros onde existem «gendarmeries» (Espanha – G.Civil; França – Gendarmerie Nationale; Itália – Carbinieri), são estas que desempenham as funções de PJM, ao contrário do que sucede na generalidade dos países anglo-saxónicos, em que aquela missão está atribuída às Polícias Militares.

O que não é usual é encontrarmos solução semelhante à ora preconizada, com a atribuição de funções de investigação de crimes militares a uma polícia civil.

Em síntese, a eventual extinção da PJM e a atribuição das suas competências a uma Polícia civil, contraria totalmente a opção por um sistema dual, com uma polícia civil e uma de natureza militar, põe em causa a coesão e a disciplina das Forças Armadas e de outras forças militares e contraria o próprio Sistema de Justiça Militar.

Legislação de suporte
Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro; Lei n.º 63/2007, de 6 de Novembro; Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto; Lei n.º 97-A/2009, de 3 de Setembro; DL n.º 200/2001, de 13 de Julho; DL n.º 9/2012, de 18 de Janeiro.

Lisboa, 30 de Setembro de 2018

Carlos Manuel Gervásio Branco (coronel na reserva)




quarta-feira, 6 de março de 2019

A militarização da China sob Xi Jinping «recuperando» regiões que jamais estiveram sob domínio chinês


Grande parte do equipamento que o Exército Popular de Libertação da China
está a adquirir: porta-aviões, veículos anfíbios para transporte de tropas
e caças invisíveis, tem o intuito de colocar em evidência o poder
e não a defesa da pátria.
Foto: porta-aviões Tipo 001A da China em 2017.
(Imagem: GG001213/Wikimedia Commons)
Gordon G. Chang, Gatestoneinstitute, 4 de Março de 2019

Original em inglês: The Militarization of Xi Jinping's China

Tradução: Joseph Skilnik


  • O Exército Popular de Libertação da China está a armar-se a toque de caixa e isso está a accionar o alarme. Pequim sempre afirmou que os objectivos das suas forças armadas são apenas defensivos, mas nenhum país está a ameaçar nenhum território que se encontra sob o controle da China. Portanto, o aumento das forças armadas mais parece uma preparação para a beligerância.
  • Os líderes chineses, não apenas Xi Jinping, acreditam que os seus domínios devem ser muito maiores do que são hoje. O temor é que, agindo com base na sua própria retórica, acabem a usar novas e admiráveis armas com a intenção primordial de invadir e ocupar territórios, apoderar-se de águas e espaços aéreos internacionais.
  • Além disso, na década de 1930, os media divulgaram a ideia de que o Japão estava a ser cercado por potências hostis que queriam evitar a sua ascensão. Eri Hotta escreve no livro Japan 1941: Countdown to Infamy que os japoneses «se convenceram a acreditar que eram vítimas de circunstâncias e não agressores». É exactamente isso o que os chineses estão a fazer neste momento.
  • Lamentavelmente, esse trágico comportamento paradigmático é evidente hoje numa Pequim onde os chineses, usando dragonas com estrelas nos seus ombros, parecem querer repetir um dos piores erros do século passado.
«Estejam prontos para a batalha». É assim que o jornal South China Morning Post de Hong Kong, que reflete cada vez mais a linha do Partido Comunista, resumiu a primeira ordem do ano de Xi Jinping ao Exército Popular de Libertação da China (PLA). Xi, segundo as suas próprias palavras que foram transmitidas para todo o país, exigiu o seguinte: «preparem-se para uma ampla campanha militar a partir de um novo ponto de partida».

O ousado líder da China vem ameaçando periodicamente, de uns meses para cá, os seus vizinhos e os Estados Unidos. «Xi não está apenas e tão somente a brincar de fazer guerra», salientou Victor Mair da Universidade da Pensilvânia, na mailing list deste mês da Fanell Red Star Rising. «Está realmente a aventurar-se para começar uma guerra. Ele encontra-se num perigoso estado de espírito».

Perigoso de verdade. De Washington a Nova Deli, os estrategistas políticos interrogam-se se a China começará a próxima grande conflagração da história. Pequim evidentemente quer «vencer sem lutar», mesmo assim as atitudes de Xi Jinping podem levar à conflagração. Um factor particularmente inquietante em relação a isso é a questão das forças armadas estarem a conquistar poder nos círculos políticos em Pequim.

O PLA, como é conhecido o exército chinês, está a armar-se a toque de caixa e isso está a accionar o alarme. Pequim sempre afirmou que os objectivos das suas forças armadas são apenas defensivos, mas nenhum país está a ameaçar nenhum território que se encontra sob o controle da China. Portanto, o aumento das forças armadas mais parece uma preparação para a beligerância. Grande parte do equipamento que o Exército Popular de Libertação da China está a adquirir: porta-aviões, veículos anfíbios para transporte de tropas e caças invisíveis, tem o intuito de colocar em evidência o poder e não a defesa da pátria.

Os líderes chineses, não apenas Xi Jinping, acreditam que os seus domínios devem ser muito maiores do que são hoje. O temor é que, agindo com base na sua própria retórica, acabem a usar novas e admiráveis armas com a intenção primordial de invadir e ocupar territórios, apoderar-se de águas e espaços aéreos internacionais.

Os chineses, líderes ou não, com certeza apresentam os casos mais agudos de irredentismo do mundo consoante com a procura de «recuperar» regiões que de facto jamais lhes pertenceram, não necessariamente vislumbram a conquista militar como meio de adquirir vastos «territórios perdidos». Acreditam que podem intimidar e coagir e, em seguida, tomar sem o uso da força.

O galopante rearmamento também tem outros objectivos. Referindo-se à China, Arthur Waldron da Universidade da Pensilvânia, salientou ao Gatestone Institute:

«Acredito que o objectivo da China seja aumentar a sua grandiosidade com a finalidade de deixar o mundo boquiaberto, portanto a corrida aos armamentos deve ser entendida como esforço de se tornar forte o suficiente para zombar do sistema internacional sem sofrer as consequências».

Apesar da retórica, os chineses sabem dos «imponderáveis» da guerra. Durante séculos não se deram bem nas guerras sofrendo derrota atrás de derrota, invasão atrás de invasão.

O histórico militar da China durante a gestão da República Popular também não impressiona ninguém. É verdade que os chineses tomaram o controle das ilhas Paracel e parcelas das ilhas Spratly no mar do Sul da China numa série de escaramuças com diversos governos vietnamitas, mas esses incidentes foram de somenos em comparação com os reveses.

É possível que Mao Tsé-Tung tenha sofrido 600 mil baixas entre elas o seu filho Mao Anying, para chegar ao armistício entre as Coreias no início dos anos 50. O seu sucessor, Deng Xiaoping, empreendeu uma incursão em 1979 «para dar uma lição ao Vietname» e sofreu uma derrota humilhante nas mãos do seu minúsculo vizinho comunista.

Apesar desse histórico medíocre, a China causa grande preocupação. Xi já devia favores aos generais e almirantes, que formam o cerne do seu apoio político nos círculos do Partido Comunista, e eles ficaram ainda mais poderosos à medida que o povo chinês se tornou mais irrequieto.

Conforme Willy Lam da Chinese University of Hong Kong disse ao Gatestone Institute no corrente mês: «a alta liderança sofre de paranóia com respeito a agitações sociais de grandes proporções», de modo que deu aos militares e policiais «poderes especiais para reforçar a segurança interna... Xi sabe muito bem que o exército e a polícia são os que mantêm o Partido vivo».

Xi tentou controlar os militares mediante duas iniciativas «anticorrupção», na realidade uma série de expurgos políticos e, conforme June Teufel Dreyer da Universidade de Miami salientou ao Gatestone Institute: «uma extensa organização militar».

No entanto, essas iniciativas não tiveram o sucesso inteiramente desejado. É por esta razão que Xi está a tentar, segundo as palavras de Waldron, ser visto como o «imperador marcial». Ele conhece o poder do PLA como «coroador de reis», capaz de apoiar e depor líderes civis. «O actual foco chinês nas forças armadas, sem dúvida, tem raízes políticas internas e não está relacionado às mudanças no âmbito da segurança» segundo Waldron. Xi, com o propósito de bajular, tem que passar a mão na cabeça dos oficiais de alta patente.

Não é porque o processo é conduzido internamente que o torna menos perigoso. Xi defendeu orçamentos militares gigantescos e permitiu que oficiais de alta patente tivessem papéis descomunais na formulação de políticas externas aventureiras. A declaração de Novembro de 2013 da Zona de Identificação de Defesa Aérea do mar da China Oriental, uma audaciosa tentativa de controlar os céus além do seu litoral, é um claro exemplo da influência militar. A tomada de Scarborough Shoal no início de 2012 e a reivindicação e militarização de parcelas do arquipélago de Spratly no Mar do Sul da China são outros exemplos desestabilizadores.

A influência militar na capital chinesa significa que a hostilidade nunca sai de moda. Duas vezes em Dezembro, oficiais de alta patente do PLA ameaçaram publicamente, sem que houvesse nenhuma provocação, atacar a Marinha dos EUA. «Os Estados Unidos têm mais medo da morte,» disse o contra-almirante Luo Yuan quando se descontrolou pela segunda vez.

«Agora temos os mísseis Dong Feng-21D e Dong Feng-26. São destruidores de porta-aviões. Nós atacaremos e afundaremos um dos seus porta-aviões. Serão 5 mil baixas. Atacaremos e afundaremos dois porta-aviões, serão 10 mil baixas. Vamos ver se os EUA estão com medo ou não?»

Todos, não somente os EUA deveriam estar com medo, em parte devido aos paralelos do exército da China de hoje e o dos do Japão na década de 1930.

Na década de 1930, oficiais militares do Japão, conforme Dreyer assinalou ao Gatestone Institute, tomaram «medidas drásticas para forçar o governo a entrar em estado de pé de guerra, chegando até a assassinar políticos japoneses contrários a tais medidas».

Naquela época, os militares japoneses, como os chineses de hoje, foram encorajados pelo sucesso e pelo ultra-nacionalismo. Naquela época, como agora, os civis controlavam, desarticuladamente, o maior exército da Ásia. Naquela época, como hoje, o maior exército da Ásia é cheio de certezas e beligerância.

Além disso, na década de 1930, os media divulgaram a ideia de que o Japão estava a ser cercado por potências hostis que queriam evitar a sua ascensão. Eri Hotta escreve no livro Japan 1941: Countdown to Infamy que os japoneses «convenceram-se em acreditar que eram vítimas de circunstâncias e não agressores». É exactamente isso o que os chineses estão a fazer neste momento.

«Ao perguntarmos: 'queriam a guerra?' a resposta é sim, e se perguntarmos 'queriam evitar a guerra?' a resposta também é sim», observa Maruyama Masao, importante cientista político do pós-guerra, conforme relatado por Hotta. «Apesar de quererem a guerra, tentaram evitá-la, mesmo querendo evitá-la, deliberadamente escolheram o caminho que os levou a ela».

Lamentavelmente, esse trágico comportamento paradigmático é evidente hoje numa Pequim onde os chineses, usando dragonas com estrelas nos seus ombros, parecem querer repetir um dos piores erros do século passado.





terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

DAS ÚLTIMAS PROMOÇÕES NO EXÉRCITO AO COMANDO MILITAR


João José Brandão Ferreira, Oficial Piloto Aviador

«Nenhum dos nossos inimigos se atreveu a
atacar-nos quando reunimos todas as nossas
forças, tanto por causa da nossa experiência
nas coisas do mar, como pelos muitos
destacamentos que temos em diversos
lugares do nosso território».
In, Oração de Péricles, 430 A.C.

O Decreto do PR n.º 1-D/E/F promoveu três majores generais (duas estrelas), do Exército a tenentes generais (três estrelas).[1]

Não estando em causa as pessoas, tão pouco a sua competência profissional, existe um facto, porém, sobre o qual gostaríamos de reflectir digamos, academicamente.

O facto é este, um dos agora promovidos é oriundo do Serviço de Administração Militar.

Ora isto levanta questões no campo dos princípios e da doutrina do Comando Militar.

É certo que o actual EMFAR permite, pelo menos desde 1974, que um oficial desta «especialidade» possa ser promovido, em «situações excepcionais», a general de três estrelas (Art.º 197-4, do actual «emfar»).

E, de facto, de uma excepcionalidade se trata, dado que no Exército, só são conhecidos três casos anteriores a este: o do general Vergas Rocha promovido em 1 de Abril de 1981, a fim de ir ocupar o cargo de chefe da divisão de Administração e Finanças, do EMGFA; do general Victor Mesquita promovido em 4 de Janeiro de 1989, para desempenhar as funções de chefe do departamento de Finanças do EME e do brigadeiro Costa Alves, do Serviço de Material, promovido a três estrelas, em 5 de Março de 1980, para ir ocupar o cargo de director-geral de Armamento (salvo erro).

Promoções que geraram alguma controvérsia.

Excepcional também, porque na Força Aérea e na Marinha, a promoção a oficial general de três estrelas estar reservada, respectivamente, aos pilotos aviadores e aos oficiais oriundos da classe de Marinha.

Cada um destes Ramos tem, porém, uma excepção à regra: a FA através da promoção do brigadeiro Rui Espadinha a três estrelas, em 11/8/82, sendo do quadro de engenheiros aeronáuticos; a Armada, através da promoção a vice-almirante de um oficial oriundo da Administração Naval, de seu nome Alfredo de Oliveira.

O primeiro era bem visto pelo general Lemos Ferreira, tendo sido director das Oficinas Gerais de Material Aeronáutico; o almirante teve a sua promoção em 1 de Abril de 1981, e bem relacionado com o almirante Sousa Leitão, e foi desempenhar funções no EMGFA.

Como curiosidade resta acrescentar que os três oficiais do Exercito, de Administração Militar mencionados, frequentaram o Instituto Militar dos Pupilos do Exército, o mesmo se passando com o actual CEME.

A questão não é pacífica, sobretudo no seio dos oficiais cuja especialidade, classe ou serviço os impede de ultrapassarem as duas estrelas.

Mas estes assuntos raramente são discutidos…

Os cadetes destinados a estes quadros eram, aliás, avisados quando frequentavam a Academia Militar, a Academia da Força Aérea e a Escola Naval (até antes), do topo da hierarquia a que poderiam aspirar.

As próprias disciplinas que lhes davam acesso, nomeadamente a Administração Militar, eram diferentes das outras.

Alguma formação comum e frequência de cursos de promoção em conjunto, há cerca de duas décadas, acaloram o debate.

Outro tipo de divergência (ainda mais grave) – a talhe de foice – tem ocorrido na GNR, com o «forcing» de oficiais cuja formação não foi feita na Academia Militar, quererem ter acesso ao generalato, o que tem sido (mal) apoiado por políticos do MAI, por razões que não vamos agora aduzir.

A Força Aérea, por seu lado, tinha aberto uma outra «excepção», quando decidiu promover oficiais dos quadros técnicos, a coronel, nos idos dos anos 80, quando até então, apenas podiam ser promovidos a tenente-coronel.

A estes oficiais também lhes estava vedado comandar unidades, mas houve numerosas excepções.

Também se passou a nomear oficiais que não eram das Armas para cargos de Adidos de Defesa/Militar, nomeadamente oficiais do quadro de Administração Militar e Aeronáutica, e até se nomeou um oficial fuzileiro, não oriundo da Escola Naval, o que era anti-regulamentar e deu origem a um conflito com o MNE.

Curiosa e significativamente, os países para onde estes oficiais eram (e são) nomeados situam-se em África…

Em síntese as excepções são muitas – o que levanta a questão de porquê uns e não outros – tendo a atenuá-las, razões de falta de pessoal e de, em determinado período, permitir o descongestionamento nas promoções de alguns quadros, que estavam inflacionados de oficiais por via das necessidades da guerra terminada nos idos de 1974/5.

Mas voltando à questão anterior o princípio doutrinário a preservar (se é que tal e pode considerar um princípio doutrinário – e que nos parece estar certo – é o de que quem combate, comanda.

E quem combate, no Exército, são os oficiais (só estamos a falar destes) das Armas (Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia Militar e Engenharia de Transmissões – e sabe-se a controvérsia que houve para passar esta última, a «Arma») e não os dos serviços («que apoiam») como é o caso do Serviço de Saúde, o Serviço de Material e o Serviço de Administração Militar, cujos oficiais são formados na Academia Militar.

Por isso, para além do «Comando» existe a «Direcção» e a «Chefia».

Dito de outra forma, quem deve comandar são os oficiais que, sendo oriundos de uma Academia Militar – é para isso que elas existem – estão na «linha de emprego» dos meios e não os que estão na «linha de sustentação» dos meios. Estes últimos dirigem e chefiam.

Mas porquê, perguntarão ainda os mais relutantes? Pois porque o combate é o fim último da preparação militar e só quem está treinado para o mesmo, está em condições de entender e abarcar as envolventes e as prioridades da complexidade do campo de batalha.

Senão, pela mesma lógica que agora foi utilizada, poderíamos um dia vir a ter como chefe de Estado-Maior, um oficial com a especialidade de médico.

Lembra-se que os veterinários (por enquanto) apenas podem ascender a tenente-coronel…

E agora que temos um general de três estrelas de Administração Militar nada obsta a que não possa ser o futuro CEME…

Ou então, porque não, um qualquer membro da comissão parlamentar de Defesa poder vir a ser chefe de Estado-Maior. Porque não? Dá-se-lhes uns créditos, pim, pam, pum, já está!...

Não digam que não é possível, pois eu já vi de tudo o que nunca esperava ver e até já tivemos em época de suprema rebaldaria, um capitão graduado em general de três estrelas, comandante da Academia Militar!...

*****

Sabe-se que o oficial agora em causa foi escolhido por, entre os possíveis, ter o perfil mais adequado para uma determinada função: o Comando Logístico.

Não contestamos a apreciação e deverá, infelizmente ser o caso, sabendo-se quem fez a escolha.

Mesmo assim, por uma questão do tal «princípio» e da tal doutrina (que pelos vistos não existe) a decisão deveria ter sido ponderada de outro modo.

E aqui levanta-se uma outra questão: é certo que cada um de nós pelas suas experiências, gosto e saber, estará melhor numa determinada função do que noutra, e tal não deixa de ser verdade no âmbito dos oficiais generais.

No entanto, ao nível que estamos tratando (e um general é um «generalista»), qualquer oficial general (das Armas) deve poder ocupar seja que função ou comando exista. E não há muitos. E tal tem muito a ver com as promoções feitas anteriormente.

Também é verdade que há, hoje em dia, muito poucos oficiais generais de três estrelas e que o tempo de permanência no posto não é dos mais alargados (ou seja há pouco por onde escolher), mas isso levar-nos-ia a outras discussões.

Algo que também afecta o «status quo» é a existência do posto de brigadeiro general.

Esta «novidade» não nos parece ter sido boa ideia.

Começou por ser ideia do Exército, tendo sempre a oposição da Marinha e Força Aérea.

A «racional» tinha a ver com os cargos e funções NATO e, eventualmente outros, que eram ocupados por um oficial desse posto (general de uma estrela), e «nós» não podermos concorrer a tais lugares por não termos esse posto nas nossas fileiras.

Com o devido respeito a argumentação não convencia, nem convence. Em primeiro lugar porque havia muito poucos cargos desses a que poderíamos concorrer; depois porque se tal fosse julgado de importância maior, facilmente se poderia enviar um coronel ou capitão de mar-e-guerra tirocinado, ou, mais facilmente se poderia graduar um qualquer oficial desse nível naquele posto.

Além disso o leque de postos em oficial general passou a ser de quatro (mais do que no âmbito dos oficiais superiores) numas Forças Armadas a caminho da extinção.

Tanto se andou nesta discussão do sexo dos anjos, que a proposta acabou por ser aprovada (confesso que não tive pachorra para ir saber em que moldes, nem quando), algures pelo início do século XXI, o que logo foi aproveitado pelos políticos para se diminuir o número de oficiais de duas e três estrelas transformando a pirâmide num paralelepípedo irregular, poupando uns trocos e fazendo um «downgrading» de várias funções.

Consequências espúrias que normalmente não se prevêem…

*****

Ora onde queremos chegar é que no âmbito tratado – como em tantos outros – haja princípios e doutrina, no seio dos Ramos (e não se ponham, deslumbrados, a copiar acriticamente um exemplo qualquer do que se passa «lá fora»), pois há questões que são, por assim dizer, pilares onde assenta o funcionamento da Instituição Militar.

Ora o Comando e a Liderança são o fulcro de toda a actividade militar.
Isto é, aquilo que for considerado importante tem de estar escorado e aceite solidamente, a fim de que as questões fundamentais sejam tratadas de um modo racional. Neste âmbito o «EMFAR» parece ter excepções a mais…

Mais uma vez se frisa a necessidade de preservar princípios; mudar a doutrina só depois de reflexão aprofundada e ser flexível quanto a estratégias, tácticas e técnicas.

Em conclusão as grandes decisões nas Forças Armadas têm que estar sustentadas em princípios e doutrina; a coerência tem que acompanhar toda a estrutura; idem para Leis e Regulamentos e as excepções, elas próprias, só existirem excepcionalmente, para que as coisas, as decisões e as pessoas não andem ao livre arbítrio de quem ocupa transitoriamente uma função ou cargo; ao alvedrio de amizades ou ao interesse do momento.

Resumindo: deve-se definir muito bem quem e porquê pode atingir o topo da hierarquia e tal não deve dar azo a excepções, por incompatibilidade manifesta. E não dar a parecer que a Instituição Militar é uma manta de retalhos.


[1] II Suplemento, Série I, de 2019-01-09, 11773162, do DR n.º 6/2109.





sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

SUBSTITUIÇÃO DA G-3: UM PROBLEMA COM 40 ANOS!


SUBSTITUIÇÃO DA G-3:
UM PROBLEMA COM 40 ANOS!


João José Brandão Ferreira, Oficial Piloto Aviador, 27 de Janeiro de 2019

«A falta de personalidade das elites
portuguesas constitui um perigo
nacional permanente».
Artur Ribeiro Lopes
In, «Política», 141)

A espingarda automática G-3, de origem alemã, foi uma excelente opção para a situação de guerra subversiva com que nos passámos a defrontar a partir de 1961 em Angola, depois na Guiné, em 1963 e, finalmente, Moçambique em 1964.

A ideia de a passar a fabricar em Portugal sob licença foi uma óptima ideia. Aguentou toda a guerra (14 anos), se bem que, para o fim da mesma, já tivesse dificuldade em bater-se com a «Kalashnikov», que a guerrilha passou a usar…

Quando as coisas começaram a serenar em Portugal após o 25 de Novembro de 1975 e se deu início à reconversão das Forças Armadas, para as missões «NATO», que se começou a falar na necessidade de substituir a G-3 por outra mais moderna.

Eu não me importava de ganhar em escudos (não gosto do euro), as vezes que já se falou, desde então para cá, nessa necessidade. E coisa rara e quase nunca vista, tal necessidade nunca foi objecto de contestação…

Já se perdeu a conta as vezes que se debateu o assunto, se lançaram concursos, se fez testes, se escreveram requisitos operacionais, estudos de estado-maior, inserção de verbas na LPM, etc...

Até agora nada.

A G-3 está uma autêntica «balzaquiana» com 58 anos! (creio que as primeiras vieram em 1961).

Entretanto há muito que se deixou de fabricar em Portugal (ainda chegámos a exportar), pois cabeças muito bem pensantes resolveram arrasar com toda a indústria de defesa nacional ao ponto de, hoje em dia, não fabricarmos uma única munição!

A G-3 provou bem, porque era fiável, robusta, simples de manter, não tinha problemas de segurança, tinha uma balística equilibrada, versátil e boa cadência de tiro.

Tinha na HK-21 a sua versão de metralhadora ligeira.

Ora, uma espingarda automática é, digamos assim, o esteio do armamento de um exército. A arma que dá a cada soldado a sua capacidade individual e colectiva, no âmbito defensivo e ofensivo.

Nestas coisas convém ter em conta o provérbio português que reza assim: «o barato sai caro». Por isso se deve apostar numa boa escolha, mesmo que seja mais cara. Vai prevenir muitos problemas no futuro; ser mais económico a longo prazo e, «last but not the least», poupar muito sangue em combate e até na instrução.

É preferível, não havendo dinheiro, comprar menos e deixar opções para o futuro, do que comprar mais e pior. Já se cometeu muitas vezes este erro no nosso país (a GNR tem ao que se conta, em «armazém», uns milhares de pistolas – metralhadoras compradas há muitos anos, a um país da América do Sul e nunca utilizadas, por ex.).

Por norma quando se compra uma arma destas, deve tentar-se alargar o seu âmbito à Força Aérea e Marinha, e também às Forças de Segurança por razões óbvias de economia, cadeia logística, manutenção, gestão de «stocks», interoperacional idade, uniformização e flexibilidade de emprego.

Não esquecendo de garantir mais do que uma fonte de fornecimento, de modo a não estarmos apenas dependentes de uma só.

Sempre que possível devem ser estabelecidas «reservas de guerra».

Na compra de um novo sistema de armas existem actualmente dois problemas. Um, antigo como a mais antiga profissão do mundo, é o costume das comissões.

Lidar com isto é um quebra-cabeças que só uma legislação e fiscalização apurada conseguem gerir a níveis adequados.

O outro que se tornou uma espécie de moda é o de no fim de um concurso público, uma ou mais das partes vencidas, interpôr nos tribunais, uma providência cautelar. Sair disto passou a ser outro quebra-cabeças.

Daí se tentar fazer compras por ajuste directo, o que levanta vários outros problemas, um dos quais é o tecto orçamental permitido em tal caso (220.000 euros).

Quando os negócios são apetecíveis e existem um ou mais países interessados no mesmo, a política e a diplomacia entram em acção de um modo sub-reptício, tentando influenciar e ou negociar por todos os meios possíveis, a escolha do produto que lhes interessa.

Obviamente que nenhuma destas acções é, por norma, transparente, vindo a saber-se das verdadeiras razões de uma decisão, apenas por «fuga de informação».

O chefe de Estado belga (Rei Philippe e Rainha Matilde) visitou o nosso país entre 22 e 24 de Outubro de 2018, mas nada do que transpareceu da visita pode levar à conclusão, que este assunto tenha sido abordado.


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Serve este arrazoado como introdução ao actual concurso público internacional em curso, só há pouco tempo publicitado, que – vamos a ver se é desta – parece estar na fase final para se decidir a compra de uma espingarda automática que vá finalmente substituir a G-3.

Mas antes de prosseguirmos convém ainda recuar a um passado próximo para avaliar melhor o que está em jogo.

Nos últimos 40 anos, os paraquedistas, graças à autonomia que a chefia da Força Aérea lhes garantia (antes de passarem para o Exército – uma decisão assaz escusada), tinham comprado um lote de espingardas israelitas «Galil», de calibre 5,56mm, a primeira arma deste calibre a equipar forças portuguesas. Tal ocorreu em 1979, estando já com um grau de obsoletismo elevado.

Nos anos mais recentes as compras de armamento ligeiro, sempre efectuadas em pequenos lotes e normalmente por ajuste directo (para fugir às demoras e impugnações normais nos concursos públicos), foram as seguintes (não é exaustivo nem inclui pistolas e pistolas metralhadoras):

EXÉRCITO:
Operações Especiais (CTOE)
Espingarda automática HK 416A5 (calibre 5,56);
Espingarda automática HK 417A2 (calibre 7,62);
Espingarda de precisão HK G28 (calibre 7,62);
Lança granadas HK 269 (calibre 40 mm);
Espingarda automática HK G36 (calibre 5,56);
Metralhadora ligeira HK MG4 (calibre 5,56).

Comandos:
Espingarda automática HK G36;
Metralhadora ligeira HK MG4;
(A maior parte do pessoal ainda equipado com a G-3 e a SIG SG 543).
Restante pessoal do Exército equipado com G-3.

MARINHA:
Destacamento de Acções Especiais (do Corpo de Fuzileiros):
Espingarda automática HKG36;
Lança granadas HK AG36 (calibre 40 mm)

Polícia Marítima (Grupo de Acções Tácticas):
Espingarda automática HK 416A5.
Restante pessoal da Armada usa a G-3

FORÇA AÉREA:
Grupo de Controlo Aéreo Táctico (TACP):
Espingarda automática HK 416A5

Unidade de Protecção de Força (UPF):
Espingarda automática HK G36;
Espingarda de precisão HK G28;
Lança granadas HK AG36 (calibre 40mm);
Metralhadora ligeira HK MG4;
Metralhadora média HK MG5 (calibre 7,62).
Restante pessoal da Força Aérea utiliza a G-3.

GNR (Unidade de Operações Especiais):
Espingarda automática HK 416A5;
Espingarda automática HK 417A2;
Lança granadas HK 269 (calibre 40mm);
Espingarda automática HK G36;
Restante pessoal da GNR usa a G-3.

PSP / GOE:
Espingarda automática HK G36 (e outras);
Lança granadas HK AG36 (calibre 40mm).
Restante pessoal da PSP usa a G-3.

Os dois últimos concursos públicos que se conhecem, em que se tentou comprar uma espingarda automática, ocorreram em 2004 (creio) e depois em 2006 O primeiro, teve o apoio de um departamento técnico do Instituto Superior Técnico, no âmbito da análise multicritério, que acabou impugnado por uma das partes que concorreu; e o segundo foi expurgado do que poderia vir a constituir base de impugnação, tendo-se realizado testes exaustivos, em Mafra.

Quando estava tudo pronto, por razões que o abaixo – assinado desconhece, não houve decisão sobre o assunto e o concurso aparentemente, morreu de morte natural.

É necessário dizer que tais concursos são muito complexos, trabalhosos e caros, necessitando de um grande investimento das partes concorrentes. Por vezes os resultados (sempre demorados) podem dar origem a indemnizações.

Por outro lado parece haver uma facilidade muito grande dos juízes dos tribunais aceitarem toda a providência cautelar que lhe é submetida, pondo-se ainda a questão de se saber qual o grau de conhecimento que um tribunal dispõe para avaliar sumariamente, um assunto de tamanha complexidade e especificidade. Mesmo avaliando apenas a matéria jurídica.

A novidade do actual concurso para aquisição da nova arma foi o facto de ter sido atribuído à «NATO Support and Procurement Agency» (NSPA), (antiga NAMSA), servindo assim de uma espécie de intermediário do Estado Português.

A definição dos requisitos operacionais foi atribuída ao Estado-Maior do Exército (a arma destina-se a este Ramo e não aos outros, o que consideramos um erro, como acima já ventilado), sem a ingerência da antiga direcção-geral de Armamento e Equipamento do MDN, agora direcção-geral de Recursos.

Para acompanhar o assunto foi constituído um grupo de trabalho, cujos membros estão referidos no despacho supra dois dos quais são da direcção-geral de Recursos).

Não se sabe exactamente porque se optou por esta modalidade de aquisição, mas estamos em crer, que assim se tenta evitar o problema das «comissões» e passando a pressão de eventuais «lobbies» para a NSPA.

Além disso desaparece o problema das «contrapartidas», se é que as há, que eram uma dor de cabeça para negociar e depois ninguém cumpria…

Porém, o Estado Português demitiu-se de, certo modo, em escolher o que melhor lhe servirá; não se sabe bem que testes e avaliações serão feitos, bem como o número de concorrentes, tornando-se mais difícil ter acesso a toda a informação existente daí a importância do tal GT mencionado).

Aparentemente o processo está avançado e existem duas armas em «competição» final: a FN, belga (modelo SCAR) e a HK 416A5 e A2, alemãs.[1]

Sem entrarmos em especificações técnicas, convém dizer que, por decisão ministerial, a arma a comprar deve estar já em uso em dois países da NATO.

Torna-se ainda necessário definir o que se entende como arma de serviço padrão e arma de serviço limitado.

Basicamente a definição de «padrão» destina-se a uma arma que irá equipar um ou mais ramos das Forças Armadas; enquanto as «serviço limitado», são de emprego restrito ou especializado.

Existe alguma controvérsia sobre a necessidade ou pertinência de, actualmente, haver esta distinção.

Ora se for verdade que as duas armas supra indicadas são as finalistas, a espingarda alemã leva grande vantagem (não se conhece se houve mais concorrentes).

Em primeiro lugar porque está em uso em muitos países da NATO: a França, a Noruega, a Alemanha, a Holanda e, pasme-se, os EUA. Enquanto a FN apenas equipa as forças belgas e, em parte as da Lituânia.

As HK 416 A5/A2, já foram amplamente testadas em combate e têm dado muito boa conta de si, não havendo aspectos negativos reportados.

Acresce que já está em uso em várias unidades e subunidades dos três Ramos e na GNR…

Aparentemente a FN tem a seu favor o preço e o facto da fábrica da espingarda alemã, dado o volume de encomendas que tem, ter mais dificuldade em entregar a totalidade das armas nos prazos requeridos (até 2022).

As quantidades de material a adquirir pelo Estado Português estão especificadas no Despacho Ministerial já referido, num total de 42 milhões e 828 mil euros (divididos em seis anos – 2017-2022), e estão assim discriminadas:

– Onze mil espingardas automáticas (5,56mm);
– Trezentas espingardas automáticas (7,62mm);
– Oitocentas e trinta metralhadoras ligeiras (5,56mm);
– Trezentas e vinte metralhadoras médias (7,62mm);
– Quatrocentas e cinquenta espingardas de precisão (7,62mm);
– Mil e setecentos lança-granadas;
– Trezentas e oitenta caçadeiras;
– Três mil e quatrocentos aparelhos de pontaria.

As verbas a utilizar são as consignadas na Lei de Programação Militar (até hoje nunca nenhuma destas leis foi cumprida e cada vez que são revistas, sofrem cortes…).


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À laia de conclusão não faz muito sentido, que as forças nacionais, não tenham todas a mesma arma, e por maioria de razão, as Forças Especiais.

Veja-se o que aconteceu recentemente na República Centro-Africana em que o pessoal dos comandos foi para lá armado de G-3 e quando foram substituídos pelos pára-quedistas, para não se ter que se transportar as G-3 para cá e levar as «Galil» (que os páras usam) para lá, teve que se reconverter a companhia de pára-quedistas à G-3…

E assim estamos em vias (embora seja mais prudente actuar como o S. Tomé) de resolver, apesar de parcialmente, o magno problema da substituição da «velhinha» G-3, por uma arma adequada aos tempos e necessidades actuais.

Já que se esperou tanto tempo, ao menos que se escolha bem.

Agora já não há a desculpa de estarmos «orgulhosamente sós», sermos uns «perigosos colonialistas» e ninguém nos querer vender seja o que for…

Isto de comprar armamento exige competências alargadas e foi sempre um caso «bicudo»…


[1] Não deixa de ser curioso que no seguimento da eclosão da barbárie genocida em Angola, em 1961, se tenha tentado comprar espingardas FN belgas, mas o governo belga torceu o nariz ao negócio (por razões políticas) e foram os alemães que se dispuseram a vender a G-3.