BLOGUE DA ALA DOS ANTIGOS COMBATENTES DA MILÍCIA DE SÃO MIGUEL

quarta-feira, 29 de julho de 2015


Os colégios militares incomodam Vital Moreira


João José Brandão Ferreira, Oficial Piloto Aviador

«Uma tradição que não atenta contra nada, nem contra ninguém»

Escreveu o dr. Vital Moreira (V.M.), no PÚBLICO de 2 de Agosto, uma catilinária contra as três escolas de ensino secundário, a cargo do Exército (o Colégio Militar, os Pupilos do Exército e o Instituto – e não escola, como referiu – de Odivelas), propondo, pura e simplesmente, a sua extinção.

A gente entende o dr. V.M., estamos em Agosto, tempo de férias e S. Ex.ª está com um fastio enorme, não sabendo em que ocupar-se. Em vez de ir dormir a sesta, resolveu desopilar sobre assunto que desconhece. A ignorância é, porém, sempre atrevida.

Que nos disse então este infeliz trânsfuga da política, que resolveu ir ressuscitar uma ideia do primeiro manifesto do Partido Socialista (seu novo partido), velha de 38 anos?

Pois que os colégios militares (CM) devem desaparecer por três razões, a saber:

Não fazer sentido existir «escolas oficiais para alunos oriundos de determinada classe ou profissão»;

«Não constarem nas missões das FA e de segurança ministrar ensino básico e secundário aos filhos dos seus membros (muito menos a outras)»;

«Serem escolas institucionalmente exóticas no sistema de ensino».

Analisemos, então, as «gravíssimas» acusações deste portentoso intelecto.

Primeiro, os CM não servem nenhum grupo social ou profissional, são abertos a todas as famílias da sociedade. É lamentável que um causídico e jornalista nas horas de pachorrenta digestão não tenha procurado informar-se desta evidência simples. E, de facto, tem razão, os militares e polícias não pertencem, nem nunca pertenceram a «castas», sistema de organização social que nunca vigorou em Portugal, desde o tempo do Sr. Rei D. Afonso, o conquistador. A não ser que considere a nobreza, o clero e o povo como castas.

Adianta ainda o extraordinário pensador ser de extinguir a «noção de sociedade militar como noção oposta à de sociedade civil, existindo separadamente». Falou até em apartheid!

O homem vê coisas que eu nunca vi. Podia dar-se a hipótese de eu ver mal e ele bem, mas, como vou passando nas inspecções médicas semestrais, pode dar-se o caso de ser a outra parte a ter alucinações. Cuidado, pois!

Não precisa, por outro lado, de se autodefender de acusações de ser antimilitar, nós já o conhecemos de ginjeira.

Só uma pergunta: deveremos, pelo que diz, considerar a Ordem dos Advogados como uma instituição de classe, que visa o apartheid com a restante sociedade?

Segunda questão

É certo que não consta das missões das FA e policiais ministrarem ensino secundário. Também não consta que devem ter assistência de saúde para familiares; apoio à terceira idade, nem gerir bairros ou messes de apoio social.

As missões das FA estão voltadas para as operações militares e o apoio «cívico», na sua capacidade supletiva. Tudo isto pressupõe, todavia, uma retaguarda. É um todo.

Sem embargo, os CM, não fazendo parte de nenhuma das missões definidas, são, ao contrário, decorrentes delas e justificam-se através delas.

Na origem da necessidade de haver escolas que atendessem às necessidades específicas da condição militar (o CM está até entre os pioneiros em todo o mundo) está o facto da ausência frequente do progenitor, em paragens distantes, ao serviço da instituição/Estado/Nação e ainda a necessidade de cuidar dos órfãos e outros desvalidos, situações sobretudo recorrentes em tempo de guerra.

É certo que, actualmente, a rede escolar e o apoio social é muito mais vasto do que em tempos passados (parece que está a regredir novamente...), mas as necessidades não desapareceram de todo. Mas, pergunta-se, a existência de CM retira alguma coisa a alguém ou deixou de ser uma mais-valia?

E que valem os pruridos ideológicos do sr. Moreira perante uma realidade a quem o país tanto deve?

Terceiro

Não podemos deixar de concordar com V.M. ao considerar como «exóticos» os CM, embora certamente não pelas mesmas razões. De facto nos CM os professores ensinam, os alunos estudam, não há greves, não há graffiti, não há lixo; há respeito, organização e disciplina. Todo o mundo anda a horas, bem vestido e ataviado; existe hierarquia e sabe-se quem manda e em que circunstâncias. Mentiras, roubos, droga, homossexualidades e outros vícios são severamente reprimidos. Os alunos chumbam, quando não estudam, e não há lugar para madraços. Ensina-se liderança e patriotismo. Existe uma «família colegial» e criam-se laços para a vida.

Como se sabe, qualquer semelhança com a realidade tutelada pelo Ministério da (des)educação, é pura coincidência...

Acredito pois, piamente, que V.M. ache tudo isto exótico, pois nunca deve ter vivido nada semelhante, agora que não queira dar conta...

Já agora, os CM, se bem que tenham uma direcção diferente e um ensino com regras militares (o que, by the way, tem muitas vantagens), estão perfeitamente integrados no ensino público oficial; têm propinas caras (os órfãos de militares não pagam), e ninguém é obrigado a ir para lá, ou a lá ficar – o pacote de actividades também não tem paralelo em nenhuma outra escola do ensino secundário.

Internato e segregação de sexos, tendo vantagens e inconvenientes, nunca traumatizaram ninguém.

Para finalizar, o argumentário desta pública figura ilumina-se com duas razões finais, quiçá definitivas: nem a tradição, nem a escassa poupança da sua extinção justificam a manutenção dos CM. E vai buscar os exemplos daquilo que considera uma tradição maior e que, apesar disso, foram derribados: os tribunais militares e o Serviço Militar Obrigatório!

O dr. V.M. perdeu, mais uma vez, uma boa oportunidade de estar calado, pois foi recordar duas lamentáveis decisões que só a demagogia político-partidária e a ignorância militante justificam. Dois erros de alto coturno: um que põe em causa a condição militar; o outro que ajuda a subverter a consciência cívica da Nação.

Por isso, ó autoproclamado constitucionalista, não vale a pena juntar mais erros aos que já foram feitos (o da saúde militar vem a caminho...).

Por seu lado, a tradição de haver CM não atenta contra nada nem ninguém – a não ser, pelos vistos, o equilíbrio psicossomático de alguns comentaristas; as tradições fazem parte da vida dos povos, são um cimento identitário. Mas os CM não são só tradição, são realidades palpáveis e são competentes naquilo que fazem.

O CM tem mais de dois séculos de existência; o IO já passou um século e é do fim da Monarquia; o IMPE fez agora 100 anos e representa uma das poucas coisas úteis que a I República nos legou. Ganharam jus a serem considerados instituições nacionais, mais a mais quando já passaram a prova do tempo. Provaram até muito melhor que a actual Constituição...

Finaliza o também docente universitário (o que será que ele ensina aos seus alunos?), remetendo os militares para o seu core business, isto é a Defesa Nacional, e os polícias para a segurança interna – será que ele pensa que os ditos cujos não são cidadãos de corpo inteiro?

Devolvo-lhe a impertinência, meta-se a fazer o que sabe e não se arme em pintor Apelles.

Resta apenas perceber o que, verdadeiramente, move o dr. V.M. Talvez o título do seu escrito nos elucide, chamava-se «Instituições de classe». A formação marxista (estalinista?) não perdoa.





segunda-feira, 27 de julho de 2015


Moçambique:

A quinta dos animais à portuguesa


Gabriel Mithá Ribeiro, Observador, 25 de Julho de 2015

Em tempos foi a quinta de Dúlio Ribeiro, com gado suíno e bovino que abastecia Quelimane. Em 1980 foi nacionalizada e a dona expulsa. Hoje nada resta dela a não ser Mpuruni, um bairro periurbano pobre

Visitei o bairro periurbano de Mpuruni, a pouco mais de uma hora a caminhar a partir da cidade de Quelimane, no Norte de Moçambique. À entrada da povoação encontrei um professor do primeiro ciclo. No terreno em frente à escola, edifício rudimentar de três salas maticadas de pau-a-pique que eles mesmos construíram, ensinava a um grupo de crianças da segunda classe, meninas e meninos, a cultivarem para proveito próprio. Entre outros assuntos, recomendou que falasse com «um mais velho que tem muitas estórias».

Encontrei-o numa das primeiras casas. Dante Inácio Mora faz de fiel depositário da História de Mpuruni. Nos tempos, era uma quinta propriedade de Dúlio Ribeiro, colono português cujo nome ainda ecoa nas redondezas. Dessa herança não se notam vestígios. A excepção é talvez a estrada de terra batida de acesso à povoação.

Ainda criança, por volta de 1946, começou a trabalhar ali como pastor. O contacto foi estabelecido pelo patrão do seu pai, então empregado numa oficina na cidade. Quando chegou, o proprietário havia falecido. Filomena Ribeiro, a viúva, dirigia a propriedade coadjuvada por dois portugueses brancos. O senhor Martins, responsável pela parte administrativa, e o senhor Marques, capataz que, quando não era atendido de imediato, chamava «filhos da puta» aos trabalhadores negros, sem que fosse seu hábito tocar no assunto da raça. Havia ainda o senhor Pereira, português que vinha diariamente recolher o leite que abastecia a cidade de Quelimane.

À época, o velho pastor ganhava trinta escudos. Explicou que dava para gerir bem a sua vida e que até «era muito dinheiro». Hoje quase nada lhe resta.

A patroa apoiava os trabalhadores quando era preciso. Em caso de doença, ir ter com eles ou familiares se a casa tivesse acesso a carro para levá-los ao hospital. No fim da jornada de trabalho obrigava-os a irem visitar os seus parentes hospitalizados. Também criou uma escola na quinta, frequentada pelos filhos dos trabalhadores que eram «muitos» e outras crianças.

À época, a propriedade tinha gado suíno, bovino e produção agrícola suficientes para abastecerem a cidade de Quelimane. Para além do trabalho cuidado, da cria dos animais ao tratamento da terra, havia um sistema de desinfecção das viaturas que acediam à reserva para proteger os animais de doenças contagiosas, animais marcados a ferro com «DR», de Dúlio Ribeiro.

Desses dias que hoje lhe parecem de fantasia, contou ainda algumas das suas aventuras. Certo dia um dos bois passou a jornada a lavrar de sol a sol. Quando soltaram a canga, o animal fugiu. Andou desaparecido muito tempo até que o pastor o avistou numa quinta próxima. Disse ao proprietário, também português branco, que aquele animal era da sua patroa. Conhecia-o muito bem à distância. O sujeito negou. O animal era dele. Dante Inácio Mora aproximou-se e mostrou-lhe o «DR» no dorso. No dia seguinte, a mando da patroa, foi buscá-lo. Conseguiu imobilizar o animal com uma corda atirada ao ar e trazê-lo de regresso à quinta. O boi retomou o trabalho. Outro dia inteiro. No final, o pastor viu que continuava com jeito de fugir. Foi ter com a patroa e disse-lhe que o melhor era abaterem o animal. Filomena Ribeiro concordou. Da venda, o pastor recebeu uma boa recompensa, vinte escudos.

Mais tarde, ele e um seu colega foram encarregues de levar ao matadouro da cidade um conjunto de cabeças de gado suíno e bovino. No regresso, preparavam-se para entregar o valor da venda. Filomena Ribeiro disse-lhes que guardassem o dinheiro até ao dia seguinte. Ansioso, o pastor passou a noite com muito dinheiro em casa. Logo pela manhã, em conjunto com o companheiro apresentaram-se no escritório. O montante foi conferido pelo responsável administrativo, o senhor Martins. Receberam ordens para irem trabalhar. Dias depois, a patroa mandou chamá-los para lhes entregar um envelope fechado. Surpreendidos, Filomena Ribeiro acrescentou: «Dividam entre vocês». A patroa explicou que os tinha posto à prova, uma vez que sabia o valor exacto em dinheiro que iriam arrecadar e queria também saber o que é que fariam com tanto dinheiro numa noite. Como foram honestos, tinham direito a uma recompensa. Abandonado o escritório, abriram o envelope: duzentos escudos! Nunca Dante Inácio Mora recebeu tanto dinheiro.

Memórias gravadas por uma vida. Por alguma razão será.

Entretanto, com a independência de Moçambique, em 1975, os brancos foram embora. Mas Filomena Ribeiro ficou. Continuaram a trabalhar. Segundo o velho pastor, até que num dia de 1980 apareceram na quinta, de repente, uns agentes do governo da Frelimo chefiados pela senhora Lúcia, casada com o senhor Seródio, ambos brancos dos serviços de veterinária. Cortaram os vários acessos à quinta e só permitiram que a proprietária entrasse e saísse pela estrada da sua habitação. As demais estavam-lhe vedadas.

Sem reagir, o pastor e demais trabalhadores viram o que estava a acontecer. Não percebiam as razões e temiam a Frelimo. A quinta estava a ser expropriada. O gado levado. Só nessa transferência, das oitenta cabeças de gado que então ainda existiam, quarenta terão morrido.

No fundo, interpreto eu, era um assunto entre brancos. O habitual conflito edipiano que, por vezes, ainda ouvimos em Moçambique. Os maiores carrascos dos brancos portugueses ditos «colonialistas» foram outros brancos portugueses «revolucionários». Os últimos contam-se entre os que mais activamente, à época, alimentaram o «anti-portuguesismo» e a «acção de limpeza» da SNASP (Serviço Nacional de Segurança Popular), a versão pós-colonial africana da PIDE.

Quis o destino que eu visitasse o local a 24 de Julho de 2015, precisamente o dia em que se celebravam os quarenta anos do «Dia das Nacionalizações» decretado pela então pujante Frelimo.

Em 1980, a proprietária expropriada tentou contactar o presidente da então República Popular de Moçambique, Samora Machel. Não a quis atender. Filomena Ribeiro foi a Maputo e acabou por ser recebida. Terá ouvido do Presidente «também estou a trabalhar», uma vez que era isso que Filomena Ribeiro alegava. Ter-lhe-á dito ainda Samora Machel que, se ela quisesse, mandava vir a Quelimane um barco para que pudesse levar os seus bens de casa, não os da quinta, como o gado, posto que esses eram propriedade do Estado moçambicano. Seguiria com eles para Maputo e, depois, se quisesse, para Lisboa. A patroa foi-se embora. O pastor nunca mais a viu.

A antiga quinta de Dúlio Ribeiro, estatizada e colectivizada, em pouco tempo deixou de produzir e poucos anos depois acabou por ser desmantelada, como muitas outras empresas. O pastor, Dante Inácio Mora, há muito que tinha a sua casa construída no terreno. Tem vivido sempre no mesmo sítio. Nos primeiros momentos de desactivação da quinta, sem gado e sem trabalho, passou a fazer de guarda. Mais tarde convertido em líder comunitário. Foi quando começaram a aparecer famílias a pedirem-lhe autorização para construírem uma casa ali, no antigo terreno da quinta. Foi cedendo. Agora são mais que muitas as casas maticadas de pau-a-pique.

No antigo espaço de uma quinta colonial próspera hoje cresce mais um bairro periurbano pobre, Mpuruni, no qual os moradores, sobretudo as mulheres, se dedicam ao cultivo familiar de batata. Os terrenos são pequenos, muito parcelados. As condições de trabalho e de vida são bastante precárias. O acesso à água uma disputa. Visitei o local em época de sementeira.

O professor, à entrada da povoação, já se tinha lamentado: «Aqui o problema são os casamentos prematuros. Estudam connosco, mas depois não prosseguem os estudos na cidade. Ficam só assim. E nós temos quinhentos e tal alunos». Que aprendem em três míseras salas de aulas, eles que ignoram como eram as salas de aula mandadas edificar por Filomena Ribeiro.

Mais um filme de como se fabrica miséria para dar e durar para glória de revoluções e revolucionários. A versão do antigo pastor, Dante Inácio Mora, pode conter erros. A memória pode atraiçoar. Mas o sentido que atribui à vida é indisputável. Preso à mesma terra desde 1946, ele tem razões de sobra para ter saudades do seu mundo ideal que viu o tempo esfrangalhar, os dias da quinta dos animais de Quelimane. Onde e quando «havia respeito» e «a vida corria bem, não é como hoje».

Talvez um dia se percebam as razões de poucos (quase nenhuns) quererem saber destas memórias, os que esperam que os que as conservam vão perdendo a vida. Muitos já os satisfizeram. Assim será bem mais fácil transformar a colonização num «colonialismo» que se limitou a desgraçar os povos africanos.

Pouco falta para que a História de Portugal do século XX além do torrão europeu, onde foi decisiva, se assemelhe a charlatanice.






Costa e castigo


Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 26 de Julho de 2015

Não era difícil prever o desastre que é António Costa. Os primeiros indícios chegaram com o culto da «inteligência» caseira, que se destaca pela portentosa falta da dita e atabalhoadamente tentou converter um amorfo funcionário do PS no D. Sebastião de 2014. Os sinais acentuaram-se durante o combate contra Seguro, raro momento em que, por comparação, este se assemelhou a um estadista promissor ou, vá lá, a um ser vivo. Chegado à liderança do partido, o dr. Costa continuou a provar com espantosa frequência que a inabilidade na gestão de uma autarquia não basta para governar um país. Não era difícil prever o desastre: difícil era adivinhar a respectiva dimensão.

Comentadores magnânimos atribuem o fiasco a factores externos, da prisão de Sócrates ao advento do Syriza. Na sua generosidade, esquecem-se de acrescentar que, sozinha, a brutal inépcia do dr. Costa, que possui a firmeza da esparguete cozida, transformou cada eventual obstáculo numa cordilheira inultrapassável.

Sobre Sócrates, o dr. Costa começou tipicamente por avaliar mal o «sentimento» popular e defender com tremeliques de orgulho as proezas do preso 44 enquanto primeiro-ministro. Uma bela manhã até desceu a Évora. Meses depois, numa exibição de objectividade sem precedentes, o dr. Costa criticou um governo de que ele próprio fez parte e jurou, sem jurar, não repetir a excursão alentejana.

Sobre o Syriza, o dr. Costa já disse tudo e o seu oposto, de acordo com o que tomou pelo clima do momento. Qualquer hipotético avanço dos maluquinhos que fingem mandar na Grécia tinha o dr. Costa, dez minutos decorridos, a erguê-los ao estatuto de farol da Europa. Em vinte minutos, os avanços recuavam estrategicamente e a apreciação do dr. Costa também: uma ocasião, apelidou o Syriza de «tonto». Mas isso foi antes do referendo, em que o Syriza voltou a ser sublime. E o referendo foi antes do acordo, em que o glamour do Syriza regressou a níveis da peste bubónica.

Nos intervalos dos Grandes Temas, o dr. Costa desdobrou-se a opinar acerca de temas minúsculos, naquele português de causar inveja a Jorge Jesus e sempre no lado errado do discernimento: o «investimento» público (promete muito), a austeridade (é uma péssima opção), a autonomia dos autarcas (quer reforçá-la), a «lusofonia» (acha-a linda). Nos intervalos dos intervalos, passeou o currículo democrático e arranjou uma guerra interna com as «bases» do PS, que consultaram as sondagens e desataram a questionar a infalibilidade do chefe. As cambalhotas em volta dos (inacreditáveis) candidatos presidenciais não ajudaram. Nem os abraços aos socialistas franceses que, afinal, conspiram para varrer Portugal do euro. Nem nada.

Resta apurar se a tendência para a calamidade é involuntária ou propositada. A verdade é que o dr. Costa conseguiu, em pouco tempo, renovar as esperanças eleitorais da coligação no poder. Um tiro no pé do Governo é invariavelmente seguido por uma explosão auto-infligida no porta-aviões do PS. Se o PS perder as eleições, o mérito será inteirinho do dr. Costa. Se ganhar, é Portugal que não merece melhor. E pior parece impossível.






terça-feira, 21 de julho de 2015


A realidade é de direita


João Miguel Tavares, 21 de Julho de 2015

Achar que mantemos a liberdade de fazer o que queremos com o dinheiro dos outros é de uma avassaladora ingenuidade.

Que a realidade é de direita não sou eu que o digo, mas o Alexis Tsipras da era pós-acordo: «Quem tiver uma solução alternativa que avance e diga qual é», declarou ele numa reunião do grupo parlamentar do Syriza.

Embora seja impressionante e inesperado ver Tsipras rendido ao TINA (There Is No Alternative), a verdade é que só lhe fica bem admitir o óbvio, que é um óbvio que já era óbvio há muitos milénios, e que só deixou de ser óbvio nos últimos anos porque há gente que adora enganar-se a si própria e aos outros: quanto mais endividado estás, menos liberdade tens. E por muito convencido que estejas que a forma como te querem obrigar a pagar as dívidas te prejudica tanto a ti como ao teu credor, isso interessa muito pouco em termos negociais. Os teus argumentos até podem ser óptimos e Paul Krugman estar cheiinho de razão. Só que não tens dinheiro. Não tens poder de decisão. E, portanto, és obrigado a fazer o que te mandam.

É por isso que eu sempre gostei da expressão «protectorado» usada por Paulo Portas para designar o Portugal intervencionado. Muita gente acusava-o de falta de patriotismo, mas a mim sempre me pareceu uma formulação exacta e a mensagem certa a passar ao eleitorado: os países que necessitam de resgates para serem salvos da bancarrota são, de facto, protectorados, que ficam imensamente limitados na sua liberdade de acção, na execução das suas políticas e, em última análise, no exercício da própria democracia. Achar que mantemos a liberdade de fazer o que queremos com o dinheiro dos outros é de uma avassaladora ingenuidade, só possível de entender para quem confundiu a União Europeia com um jardim de infância, onde os mais pequeninos, ou os mais irresponsáveis, ou os mais irrequietos, poderiam fazer o que quisessem porque a mamã Alemanha estaria lá para pagar a conta.

Dizer que a realidade é de direita em 2015 não é o mesmo que dizer que ela é sempre de direita, ou que ela seja de direita em todos os lados do planeta. Mais: a realidade só é de direita na Europa dos nossos dias porque ela foi de esquerda durante todas as décadas da construção do Estado Social e do extraordinário progresso pós-guerra. Mas a partir do momento em que o Estado adquire uma dimensão incomportável e os cidadãos começam a manifestar-se contra o esbulho fiscal, como acontece tanto em Portugal como na Grécia, a realidade passa a ser de direita, na medida em que não há uma alternativa consequente às políticas de austeridade e à diminuição do papel do Estado nas nossas vidas. É a matemática, estúpido. A política tem um poder extraordinário, e eu próprio tenho estado ao lado da Grécia contra aqueles que querem reduzir o projecto europeu à sua dimensão estritamente económica, mas a política não tem o poder de fazer com que 2 + 2 sejam 5.

Tenho imensa pena que a política não seja construída a partir desta premissa, e se perca tanto tempo a tentar derrubar à cabeçada o muro da realidade. Se os partidos de esquerda gregos, portugueses ou espanhóis canalizassem para a reforma dos seus países a energia que gastam a protestar contra decisões europeias que não têm forma de controlar, estou certo que todos estaríamos muito melhores. Agora que Tsipras percebeu isso, esperemos que as esquerdas portuguesa e espanhola também o percebam. Não é possível permanecer no euro sem reformas profundas. E a postura de revolucionários do statu quo é um absurdo: antes de reformarmos a Europa e o mundo, comecemos por nos reformar a nós próprios.





quarta-feira, 15 de julho de 2015


Eu culpo François Hollande


Rui Ramos, Observador, 14 de Julho de 2015

Quem redigiu o novo guião de austeridade de Tsipras não foi a Alemanha: foi a França. Deixem portanto Merkel e Schauble em paz. Se querem um culpado, olhem para François Hollande: «a Europa é ele».

Ainda vale a pena bater no Syriza? Ontem, Tsipras prontificou-se a aprovar em menos de 48 horas todos os cortes e todas as liberalizações a que os seus antecessores da direita e da esquerda moderada resistiram durante cinco anos. Sim, o mundo é um pouco mais complexo do que parecia no bar da faculdade. Quem é que esperava ver a austeridade convertida na melhor opção da esquerda radical? Os radicais tinham razão: é mesmo uma «ideia perigosa» — parece que se pega.

As viúvas do Syriza têm uma explicação simples para este milagre digno da estrada de Damasco: foi tudo uma vingança alemã. Com o devido respeito, não me parece: a Alemanha, segundo constou, não desejava mais austeridade para a Grécia. Preferia, sem ilusões, deixá-la seguir o seu caminho de plena soberania, com a ajuda de um programa humanitário. Quem redigiu o novo guião de austeridade de Tsipras não foi a Alemanha: foi a França. Deixem portanto Merkel e Schauble em paz. Se querem um culpado, olhem para François Hollande. O presidente francês, aliás, confessou tudo na sua monárquica conferência de imprensa da manhã de segunda-feira: «Na Alemanha, havia uma grande pressão para a saída da Grécia. Mas eu recusei essa opção». Uma fonte governamental francesa foi ainda mais clara no Le Monde: «A Europa é ele». Luís XIV só dizia isso do Estado em França. Os seus sucessores republicanos, muito mais soberbos, já o dizem de todo o continente.

Há três anos, Hollande foi, com a sua conversa de «crescimento», o primeiro D. Sebastião dos inimigos da austeridade. Mas a austeridade é ele. Em França, através do ministro Macron. Na Grécia, por meio de Tsipras. E isto é assim, não porque Hollande pretenda liberalizar a França ou a Grécia, mas porque há muito tempo – desde François Mitterrand — que os políticos franceses resolveram sacrificar tudo e todos à sua ideia de capturar o poder económico alemão através de uma união monetária à escala continental. Jamais a França quis reconhecer que a moeda única deveria resultar da convergência das economias e das instituições. Jamais a França poderia admitir que o euro era reversível. Por isso, a Grécia entrou no euro, e por isso a Grécia não saiu agora. Para os políticos franceses, o euro é uma questão política, que diz sobretudo respeito ao equilíbrio de poderes na Europa ocidental. Mas é também o seu meio, através das transferências do BCE, para protegerem a França das mudanças a que estaria sujeita no mundo da globalização.

O projecto francês assenta, em primeiro lugar, no velho complexo de culpa da Alemanha. Mas o euro tem também uma base social. Sem isso, os devaneios de poder parisienses não iriam longe. Em países como a Grécia, só o regime do euro pode manter uma moeda forte que embaratece as importações e defende pensões e poupanças contra as desvalorizações monetárias. Por isso, muita gente na Grécia está disposta a aguentar, até certo ponto, as taxas e os impostos necessários para equilibrar as contas, se a alternativa for a saída do euro. Mas não esteve, até agora, pronta para sustentar liberalizações ou a debater o papel do Estado. Ora, o aperto fiscal sem reformas estruturais, que é aquilo que temos tido no sul da Europa, é de facto uma armadilha.

Beneficia aforradores e (apesar dos cortes) também os pensionistas, mas à custa de todos aqueles a quem os impostos e as regulamentações tiram recursos e oportunidades. Nestes termos, é a receita de uma longa decadência.

Pior ainda: devido à relutância de todos os políticos em assumir a disciplina e o ajustamento do euro, estes aparecem sempre como uma imposição do exterior. A «pressão de Bruxelas» é um jogo de que os governos gostam, porque é uma boa desculpa quando confrontados com clientelas e eleitores desiludidos. Mas este jogo presta-se facilmente à manipulação de demagogos como Tsipras, sempre prontos para contestar a classe política estabelecida em nome da «soberania», da «democracia» e do «Estado social» — mesmo que seja apenas para, uma vez no poder, fazerem exactamente como os seus antecessores, ou até pior.

O resultado é uma espécie de morte da política: o voto deixa de ter consequências, e a governação passa a ser regulada por noitadas em Bruxelas. É significativo que seja agora Tsipras, um esquerdista radical, o agente incumbido de liberalizar a Grécia: nada podia ser mais indicativo da falta de convicção ideológica e da ausência de apoio social com que estas reformas vão ser supostamente executadas. Alguém acredita? O Syriza ameaça desfazer-se e o líder da extrema-direita Panos Kammenos, que Tsipras levou ao poder, já se candidatou ao lugar vago de chefe da resistência à austeridade. Até ser a vez dele de assinar um acordo em Bruxelas. Não se levantem dos lugares, porque o filme continua.





terça-feira, 7 de julho de 2015


O Jantar dos oficiais [1]


João José Brandão Ferreira, Oficial Piloto Aviador

«Os Governos e os políticos passam,
Mas a Instituição Militar fica.»
Da sabedoria dos povos.

No pretérito dia 25 de Junho, cerca de 150 oficiais reuniram-se num jantar de reflexão sobre a situação das Forças Armadas (FA) – leia-se as últimas malfeitorias que o poder político tem feito à Instituição Militar.

Este jantar sendo promovido/organizado por vários oficiais generais, alguns ex-chefes militares (ou seja o expoente da hierarquia, em diferentes épocas) teve, aparentemente, como núcleo duro, uma novel organização chamada Grupo de Reflexão Estratégica Independente (GREI) mas, na prática, quem fez a mobilização foi a Associação dos Oficiais das FA (AOFA), com umas pitadas da Associação 25 de Abril (25A), senão a coisa arriscava-se a ser um «flop». Pessoal do activo nem vê-los…

Este jantar, para não ir mais atrás, vem na sequência de um outro, ocorrido em Fevereiro de 2013, desta vez organizado discretamente pela AOFA, que conseguiu agregar alguns generais incluindo o muito conhecido general Loureiro dos Santos (LS) que terá imposto condições, como por exemplo, ser o único a falar no jantar e para a imprensa. O que aconteceu.

O general LS voltou também a ser uma figura central deste último encontro a que se acrescentou a voz «off» do General Eanes através de uma missiva enviada e lida no evento.[2]

Ora neste ciclo de jantaradas nunca aparece claro quem os promove, nem o objectivo a alcançar.

Esta primeira reflexão que deixo.

A segunda tem a ver com a fraca mobilização registada.

A resposta é simples, embora complexa, nos seus fundamentos.

Simples, porque tem origem nas sequelas do 25A e do PREC e de tudo o que originou, o que dividiu profunda e irremediavelmente a Instituição Militar (IM) e os militares, deixando profundas feridas na Ética e Deontologia Militares, na coesão, confiança, camaradagem e espírito de corpo, dos três ramos das FA e que causou um imenso lastro de má consciência e falta de auto-estima, ficando a IM de mal com ela própria e a Nação com ela…

Não vale a pena continuar a tentar escamotear o assunto, que é a razão principal do mesmo nunca ter sido resolvido, tão pouco atenuado.

Deste modo, nunca se fez um exame de consciência e reflexão interna, nem ocorreu a ninguém com responsabilidades, tentar separar o trigo do joio, julgando quem se tinha portado segundo os «ditames da virtude e da honra», como prescrevia o velhinho e saudoso RDM, e os outros…

Ao contrário, criou-se vasta legislação para passar um pano por tudo; colocando todos no mesmo «saco» e promovendo todo aquele que requeresse – mesmo em situações absolutamente iníquas – a coronel ou sargento – chefe.[3]

A grande desculpa para toda esta imoralidade (que custou aos cofres do Estado grossos cabedais) foi a de «apaziguar» a família militar e colmatar injustiças cometidas no tempo da «loucura».

Convenhamos que justiça não se fez nenhuma, pois a justiça não pode pactuar com iniquidades, nem se curaram quaisquer feridas por sarar.

Apenas se «comprou» e calou, consciências, pois a carne é fraca!...

Não consta que algum político ou militar proeminente tenha contestado toda esta vergonha que comprometeu a IM por gerações.[4]

As divisões ideológicas e de grupos de interesse, associadas à acção deletéria dos partidos políticos – verdadeiros cancros da organização política portuguesa – fazem o resto. E vamos ficar por aqui.

Ou seja, está tudo dividido e, ainda hoje, o público – alvo destes jantares, sendo uma maioria alargada de pessoas que viveram ou se lembram daqueles tempos conturbados – perguntam-se de imediato, quando confrontados com iniciativas destas, quem organiza e com quem se vão eventualmente cruzar…

A isto junta-se a doença, o cansaço e a velhice. Sobretudo a descrença.

E como pano de fundo de tudo é mister não esquecer que vivemos num país de gente zangada. A tropa, talvez mais do que qualquer outro grupo profissional.


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Agora seguem as razões para o pessoal, do activo, andar arredio.

Uma razão sobreleva todas as outras: a sobrevivência. Sobrevivência dentro e sobrevivência fora das FA. Já toda a gente percebeu há muito, que a política e a opinião publicada não liga peva às FA e estas estão a ser liquidadas.

Os militares passaram a ser uma espécie de patinhos feios da sociedade e quando não são objecto de tiro ao pato como numa feira, são votados ao silêncio, que é uma forma de desprezo. Não existem.

Aliás, se amanhã acabassem com os Chefes de Estado-Maior, ninguém ia dar por isso.

Mantendo-se os deveres, cortam-lhes os direitos e amesquinham-lhes a condição militar e de militares.

Os militares estão órfãos de liderança e não têm qualquer representação política. Estão, por isso, quase todos a abandonar o barco.

Depois há muito que a sociedade transformou as novas gerações, maioritariamente em tecnocratas, e os ideais e estilos de vida propalados e desejados são a antítese do que se passa e deve passar na IM. Por isso o Estatuto da Condição Militar e todos os regulamentos têm sido modificados para se «adaptarem» a isto.

Os exércitos como os conhecemos hoje estão em regressão e a desaparecer e a ser substituídos (no «Ocidente», é claro) por empresas privadas de segurança – um modo moderno de mercenarismo – e breve virá o dia em que militares de um país poderão servir em exércitos alheios…

Também nunca vimos nenhuma chefia militar, tão pouco o Conselho de Chefes, preocupados com isto.

Por último, o medo: naturalmente os militares do activo têm receio (leia-se medo) de serem prejudicados numa carreira, entretanto destruída, sem que disso ainda tenham consciência completa.

Numa palavra, «estão noutra», até porque houve um chefe militar de estrelas douradas que, num dia já recuado, disse que não era chefe sindical…

Sem embargo o emproado MDN, tracinho Branco cujo estado normal é o de «equivocado» (olha que surpresa!), no dia seguinte ao jantar veio afirmar, com pesporrência, que «não tem dúvidas que a maioria dos militares concorda com as reformas».

Afirmação (se é que acredita nela) apenas possível numa personalidade atrevida, baseada em ignorância grosseira e toleima, condimentos óptimos para toldar o espírito e o senso.


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Chegados aqui, é mister dizer que tudo o que se puder fazer para parar e reverter o escandaloso dolo que está a ser infligido à IM e aos militares, é bem-vindo.

E, nalguns casos, até se pode dizer, que vale mais tarde, que nunca…

Contudo é preciso equacionar isto bem e ter algum cuidado com o que se faz ou venha a fazer.

Por exemplo, o comportamento dos chefes militares (hoje todos na reserva ou reforma), que ao longo dos tempos, tem dado origem à célebre premissa de que são por norma muito «reservados quando estão no activo, e muito activos quando estão na reserva»…

Ora isto retira, à partida, na grande maioria dos camaradas mais antigos entre os mais antigos, credibilidade para um conjunto de tomadas de posição, caso não haja um qualquer «mea culpa», ou explicação da sua actuação, num qualquer assunto concreto (e nunca houve).

É no activo que as tomadas de posição são fundamentais e colhem importância acrescida.

Todos sabemos que os militares foram e são educados para obedecer e para actuarem em função da cadeia hierárquica, mas também sabemos que foram preparados, outrossim, para liderar, para decidir, para terem coragem moral, iniciativa e muitas coisas mais.

E, também, que qualquer militar pode dizer o que lhe vai na alma desde que na «posição de sentido»! Coisa certamente difícil de entender a um civil….

É certo que alguns chefes militares escreveram ou disseram coisas duras sobre vários assuntos (mas que se perderam no segredo dos gabinetes); que alegaram o sentido de Estado (que mais ninguém aparenta ter); outros deram o benefício da dúvida aos políticos – que na sua maioria «odeiam» os militares (outra reflexão: porquê?) – e que todos alegam que se demitirem ou forem demitidos, existe um pelotão de outros estrelados em bicos de pés para ocuparem o lugar – o que a demissão, mal conduzida, aliás, do general Loureiro dos Santos (LS) como CEME, veio dramaticamente revelar ser verdade…

Mas nunca houve, nem nunca se percebeu que houvesse, qualquer estratégia de actuação com um rumo ou fio condutor e o Conselho de Chefes tem feito jus ao general romano que do alto da sua sabedoria sentenciou a existência de um povo nos confins de Espanha, que não se governava nem se deixava governar… Ou seja em 40 anos nunca se entendeu sobre nada, e o nada, vai da cor dos atacadores das botas à compra de submarinos…

Exemplo máximo disto é que a reforma dos Serviços de Saúde Militar ter estado em cima da mesa desde o tempo do general Melo Egídio como CEMGFA (1977) e passados 35 anos apenas haviam sido feitos alguns remendos!

Quando o ataque do poder político se começou a fazer sentir, sobretudo a partir de 1989 o que foi feito para se evitar uma longa lista de barbaridades feitas à IM e aos seus servidores?

Vamos dar alguns exemplos sem qualquer preocupação de hierarquia de importância, ou temporal.

O que se fez até hoje:
  • Para repor a verdade dos factos e das intenções, relativamente às últimas campanhas ultramarinas?[5]
  • Para repor a dignidade dos combatentes e preservar a sua homenagem e memória? (lembra-se, por exemplo, que até ao consulado do PR Cavaco Silva, as FA estiveram escovadas das comemorações oficiais do Dia de Portugal!);
  • Como oposição e repúdio pelo fim do Serviço Militar Obrigatório – uma decisão trágica do ponto de vista cívico e da Defesa Nacional! – e o que se fez para a sua reposição? (para já não falar naquela farsa trágico-cómica do SMO de quatro meses…);
  • Para evitar que os militares tenham sido corridos de praticamente todas as funções/cargos fora da estrutura das FA?
  • Para evitar a destruição do estatuto da reserva?
  • Para ter uma política activa de relações públicas? Lembram-se de quando o ministro passou o gabinete de relações públicas do EMGFA para o seu gabinete e acabaram com a revista «Baluarte», que seria substituída por outra a copiar da «Defensa» espanhola? Pois é, até hoje nada se fez que jeito tivesse, e a revista finou-se;[6]
  • Para defender institucionalmente a IM, as FA e os militares, evitando a necessidade da existência de Associações de Militares?
  • Para evitar a destruição dos Tribunais Militares, do foro próprio militar e do esfrangalho actual da Justiça Militar? (A que, apesar de tudo, os Tribunais Civis tem dado alguma dignidade de acolhimento!);
  • Para evitar a subversão do Regulamento de Disciplina Militar?
  • Para evitar que as chefias militares deixassem de ser pagas pela grelha salarial das FA, para estarem indexados aos cargos políticos?
  • Para evitar que a escolha e nomeação das chefias militares sejam feitas no actual quadro legislativo, que as torna, na prática, uma espécie de comissários políticos para as FA?
  • Para que os chefes militares possam ir falar livremente à Assembleia da República, em assuntos da sua competência em alturas e formas a determinar? Ou até a seu pedido? Exemplo: aquando da discussão do CEDN; Leis Orgânicas dos Ramos; Orçamento para a Defesa; Leis de Programação Militar, etc., e não apenas quando a Comissão Parlamentar de Defesa assim o entende?
  • Para evitar que um oficial influa, da pior maneira e desde capitão, nos assuntos das FA, Defesa, e Segurança, estando no activo (até há pouco) e ligado a um partido político?
  • Para evitar a destruição quase completa da Indústria de Defesa?
  • Em termos de solidariedade para com oficiais generais que foram humilhados publicamente, tirando um jantar de solidariedade ao general Viegas quando numa jogada de mestre, se demitiu de CEME alegando que tinha perdido a confiança no MDN? (onde só participaram generais do mesmo ramo). E, ainda – é justo referir – quando o CEMGFA general Soares Carneiro se solidarizou com o almirante Cerejeiro e demais juízes do Supremo Tribunal Militar, após a incrível cabala de que foram alvo?
  • Para evitar a degradação, assalto e destruição do IASFA?
  • Para evitar o fim do fundo de pensões?
  • Para evitar o fim do complemento de reforma?
  • Para evitar o assalto e alienação da maior parte do património sob a tutela das FA, em condições que deixam muito a desejar?
  • Para evitar reformas malsãs nos colégios militares e o encerramento do Instituto de Odivelas?
  • Para evitar a venda de parte dos F-16?
  • Para evitar a constituição de grupos de trabalho «ad-hoc», para tratarem assuntos que dizem respeito aos Estados-Maiores dos Ramos? (o que foi posto em prática pela 1.ª vez em 1989, estava eu na DGPDN, e nunca mais parou até hoje)?
  • Para evitar que a estrutura do MDN tenha sido tomada de assalto por civis, muitos deles ligados a estruturas partidárias e, até, sem passarem pela tramitação legal existente?
  • Para reagir a desaforos e humilhações, como representou a destituição do CEMGFA – almirante Fuzeta da Ponte; o desrespeito contumaz de Paulo Portas, quanto MDN e as incríveis declarações do professor Freitas do Amaral a mandar almirantes e generais irem andar de bicicleta? (E tantas outras!).
  • Para em vez de se tentar harmonizar o ensino militar com o civil, se deixasse «invadir» aquele por este, ao ponto de se já ter tentado colocar um professor universitário civil à frente de uma hipotética universidade militar? Neste âmbito, que é o último «nicho» de especificidade militar relevante, ainda restante, vai ser alvo de continuados ataques e não vão descansar enquanto não destruírem as Academias Militares!
  • Evitar o recente congelamento das promoções, atitude dez vezes mais gravosa e paralisante, que o infeliz decreto-lei 353/73, que deu origem ao feriado que hoje gozamos em Abril?
  • Para evitar, finalmente, que se aprovasse este malfadado EMFAR, preparado quase na clandestinidade, sem percorrer todos os trâmites legais em vigor e sem que algum do seu conteúdo tivesse passado pelos Estados-Maiores dos Ramos?
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Como se isto não bastasse os militares ainda se entretêm, de quando em vez, a dilacerarem-se mutuamente e a fazerem tristes figuras de si próprios.


Segue uma «short list»:
  • As constantes «guerras» para ver quem fica com mais um sistema de armas, nas Leis de Programação Militar, e na ida de forças destacadas para o exterior;
  • O «golpe de mão» do Exército à FA, que constituiu a passagem do Corpo de Tropas Paraquedistas, para aquele Ramo;
  • O encerramento do Regimento de Comandos seguido da sua reactivação, seguido da mudança da sua localização, por quatro vezes;
  • Encerramento do Instituto Militar dos Pupilos do Exército, logo seguido da sua reactivação, sem melhoria de instalações, por décadas (dá ideia de que ninguém sabe o que quer!);
  • Oposição de alguns chefes a mudanças na macroestrutura das FA, seguida da sua aceitação e implementação, aquando de promoção e mudança de função;
  • Incapacidade manifesta de lidar com a gestão do pessoal e suas carreiras, havendo a registar 40 anos de caos sem a mínima possibilidade de reestruturar fosse o que fosse;
  • Incapacidade manifesta de lidar com a retenção/saída de especialidades com maior apetência para procurar emprego no mercado civil, de cujo expoente (mas não único) são os pilotos. Nunca se tentou lidar com isto seriamente, havendo um constante mudar de agulhas e falta de entendimento crónico;
  • Incapacidade em haver uma estratégia para lidar com a Protecção Civil e sobretudo com a questão dos fogos de onde se destaca a magna questão da operação de meios aéreos (que nunca deviam ter saído das FA!);
  • A displicência com que se encarou as hipotéticas mudanças de dispositivo, aquando das tentativas frustradas da construção do novo aeroporto de Lisboa, sobretudo a de Rio Frio, por causa do Campo de Tiro de Alcochete (e não só). Aliás qualquer parecer de um grupo ecologista ou similar, tem de longe mais importância do que qualquer parecer sobre aspectos de Defesa e Segurança Nacionais, os quais por norma não são pedidos quanto mais atendidos. Nada que tenha perturbado, porém, o equilíbrio psicossomático das chefias militares, que apostam sempre em estar «serenas» e serem «parte da solução e não do problema»…
  • Outra questão que dilacerou os Ramos foi a controvérsia sobre a quem deveriam pertencer os meios aéreos de asa rotativa, assunto que se arrastou por anos;
  • O recente episódio em que um alto chefe militar pediu para passar à reforma, tendo ficado no activo e a posterior incrível posição da Caixa Geral de Aposentações sobre o assunto, e de todos os outros que ficaram a ver…
  • Finalmente diz a declaração tornada pública no fim do jantar, repudiar «a tentativa de desresponsabilização política da tutela, que sempre tem feito o anúncio público das medidas tomadas, escudando-se na participação e concordância das Chefias Militares»; é verdade e tal tem constituído uma iniquidade política, institucional e pessoal. Porém, até hoje, e já lá vão muitos anos, nunca houve um qualquer desmentido de uma única dessas chefias, ao passo que muitas vezes as mesmas, se têm deixado arrastar para conferências de imprensa, onde algumas medidas foram apresentadas, sentando-se ao lado daqueles que usam o título de MDN – sem que, até hoje nesta República, algum tenha exercido tal cargo[7].

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    Numa palavra, não foi por acaso que a IM chegou ao ponto a que chegou.

    Só é respeitado quem se dá ao respeito. E as Forças Armadas, por tudo o atrás descrito, e não só, deixaram de se dar ao respeito.


    O País está, neste momento, desprotegido, num dos pontos mais baixos da sua História em termos de Poder efectivo.

    A tropa está desmoralizada; o país não tem reservas de espécie alguma (tirando crude, parte do qual está guardado fora do país!); não tem capacidade de produzir uma munição de qualquer calibre e nem sequer é capaz de mobilizar parcialmente, uma pequena parte da sua população, não só porque o sistema de mobilização foi destruído, como, também, por não ter sequer botas para calçar, digamos, 500 indivíduos de uma só vez…

    Ora em toda esta débacle não podemos em verdade dizer, que as sucessivas chefias militares não têm vastas culpas no cartório, não só por acção mas, sobretudo, por omissão e demissão.

    E devem arcar com a sua parte de responsabilidade pela situação a que chegámos.

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    Desde meados de 1976 e até hoje, tenho tentado denunciar e inverter toda esta situação a qual, ao contrário da maioria, sempre considerei atentória da IM e da Nação.

    O resultado foi, a páginas tantas, terem-me punido – diga-se em abono da verdade, com alguma razão – e não descansaram enquanto não me puseram fora do serviço activo.

    Fora processos em tribunal, outras ameaças e uma censura cerrada a muitos níveis.

    Espero, contudo, continuar a denunciar o que entendo por denunciável, mesmo depois de morto.

    Mas, como disse, vale mais tarde que nunca e tudo o que se puder fazer para corrigir os erros manifestos e punir o dolo perpetrado, é bem-vindo.

    E parece que, mesmo antigos chefes militares por mais «compreensão» que tenham tido pela actuação dos políticos para com as FA, passaram a estar revoltados com a soma de malvadezas, algumas roçando a humilhação, que têm sido perpetradas – estas últimas sobre o pessoal na reserva poder ir para continuo duma escola, ou os preceitos a que agora estão obrigados os da reforma relativamente ao uso e porte de armas, são disso o derradeiro expoente.

    Espero que seja a consciência de velhos soldados, cuja formação militar deixa marcas indeléveis, a vir ao de cima!

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    Voltemos ao jantar e outras eventuais iniciativas já tomadas ou a tomar.

    Não só é adequado mas essencial, que tudo o que se faça, não tenha conotações partidárias, se confunda com apoios espúrios eleiçoeiros e, ou, não se encontre ligado ou infiltrado pelas diferentes maçonarias existentes.

    A única ideologia deve ser a da dignidade da IM e dos militares; a doutrina, o patriotismo e a estratégia, a defesa da independência e perenidade de Portugal.

    Sobre cujas sucessivas machadadas, a hierarquia, aos costumes tem dito nada. Será que pensam que tal não cabe nos seus deveres?

    Os leitores certamente já repararam que sobre a figura do Presidente da República, que ostenta – mas apenas ostenta – o honorífico título de «Comandante Supremo das FA», nada disse.

    Para quê? Desde Eanes que sobre as FA todos têm sido de uma vacuidade cujo esplendor brilha nas frases de circunstância (tirando o que atrás foi dito sobre o actual PR relativamente às FA terem lugar de destaque no dia de Portugal e onde passaram também a desfilar grupos de antigos combatentes).

    Houve até um – que em tempo de guerra foi dispensado de ir à tropa por ter os pés chatos – que se cobriu de ridículo ao escrever um artigo no Diário de Noticias apelando a que devia haver mais debate sobre as FA…

    Por último, analisemos o que se passou no jantar.

    Primeiro, foi um bom negócio para o Hotel Mundial.

    Foi lida uma mensagem do general Eanes, a qual, salvo melhor opinião, foi perfeitamente deslocada para o âmbito para que foi dirigida.

    Foi lido um pequeno comunicado – que tenho por bem escrito – à comunicação social que toca em alguns pontos pertinentes (era muito difícil ser mais abrangente/sintético para o objectivo de fazer passar uma mensagem para a comunicação social), tendo, porém, tido pouco eco, na mesma e nos comentadores de serviço.

    No fim do jantar, onde não estava previsto ninguém falar – não se percebe, contudo, como se pode debater ou refletir sobre algo, se ninguém fala – um oficial mesmo sem lhe ser dada a palavra e com 14 decibéis elevados colocou uma pergunta pertinente: E a seguir o que se faz?

    Ninguém lhe respondeu.

    Hoje já ninguém se lembra do repasto e, se nada se passar a seguir, foi um tiro de pólvora seca e mais uma oportunidade perdida.

    Vou ainda e para finalizar, dar-me ao incómodo de tentar responder ao meu camarada de armas que colocou a questão.

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    Não se preparar o dia seguinte parece ser pecha dos militares, o que aparenta ser uma incongruência e inconformidade graves, dada a sua formação, instrução e treino.

    Mesmo quando se abalançam a fazer coisas complexas e sensíveis, como sejam golpes de estado, de que são exemplo o 28 de Maio (de 1926), salvo «in extremis», um ano e meio depois por Carmona e Salazar; e o 25 de Abril (de 1974), emendado (parcialmente) à última, a 25 de Novembro (de 1975), mas com danos irreversíveis, 40 anos depois.

    A IM está ainda a pagar as favas de tudo isso.

    Do século XIX e do granel criminoso da I República, nem vale a pena falar. E também ninguém quer falar...

    Não se trata agora (segundo consta no convite feito e na declaração lida) de fazer nada semelhante, mas sim o de tentar parar com tanta barbaridade (os termos usados são mais bonitinhos), fazer reverter as asneiras maiores e colocar a IM e os militares, na justiça relativa adequada à condição militar e à posição especialíssima que lhes cabe na estrutura do Estado e da Nação.

    E, já agora, – digo eu – tentar defender minimamente este pobre povo dos seus inimigos externos das chagas morais da sociedade, que o deslustram e, até, de si mesmo.

    E a primeira coisa que é necessário apurar é se os agentes políticos que têm afrontado a Instituição Militar são apenas adversários ou são inimigos das FA e dos militares – e, por arrastamento, da própria Nação. Pois as FA são uma instituição absolutamente estruturante do país desde a sua fundação.

    A diferença não é um pormenor.

    Eu creio, que a maioria da classe política – e isso é transversal a todos os Partidos – uns por umas razões, outros por outras, não gosta, não entende, não quer e têm até um pó indisfarçável, aos militares.

    Mas a maioria dos meus camaradas tem entendido (ou fingido) que eu não tenho razão e sou um exagerado (normalmente os adjectivos não se ficam por aqui).

    E, por isso, na «Ordem de Batalha» que elaboram, colocam as Forças Políticas no campo das «Forças Amigas».

    Assim devia ser, de facto, e outra coisa não faz sentido.

    Acontece, porém, que a prática tem desmentido este desiderato, por uma margem que ultrapassa qualquer desvio padrão.

    Ora tomar decisões sobre premissas erradas nunca deu bom resultado. Daí, também, o insucesso de tudo o que se tem tentado fazer até hoje…

    Seja como for a «Estratégia» – e isso todos os oficiais, sobretudo os de graduação superior, devem saber (o GREI é até, um grupo de reflexão estratégica) – que esta disciplina lida com inimigos e não com adversários e utiliza como ferramentas as diferentes formas de coação ao seu dispor.

    Ora o dia seguinte só valerá a pena planear – já que o «poder» da palavra ou é ignorado pela palavra do Poder ou leva muito tempo a dar frutos – e mesmo neste âmbito pouco se tem feito – se conseguir preparar um conjunto de acções coativas, que levem os tais agentes políticos a mudar a sua actuação.

    Mas parece que ainda não se reuniram as condições para confluir numa estratégia a sério.

    Ora a discussão de formas de coação (podem ser políticas, económicas, financeiras, diplomáticas, psicológicas, militares, cívicas, etc.), não se fazem e nunca se fizeram em jantares públicos.

    De modo que, caro camarada, após a intendência ter tratado do estômago e umas declarações comedidas, terem acalmado o espírito, foi tudo dormir com a consciência tranquila do dever cumprido. Até ao próximo jantar.

    Até porque comer fora, caro camarada, é que é o desporto nacional. Não é o futebol.

    E, como disse o tracinho Branco, cujo despautério não conhece limites, «é a Democracia a funcionar». A dele.



    [1] Este trabalho foi escrito sem qualquer preocupação de tempo ou de espaço.

    [2] Uma missiva que, para além de um elogio ao GREI e à 25A, é intragável do ponto de vista do entendimento.

    [3] Até a «classe» dos oficiais generais, que tinha sido preservada deste tipo de promoções, acabou por ser atingida aquando da promoção do coronel Jaime Neves a major general, o que era perfeitamente dispensável e não lhe acrescenta nada…

    [4] E não resisto a lembrar aquela distribuição pindérica de medalhas a granel, quase em regime de «self service», promovida por esse monumento à demagogia populista, conhecido na gíria pelo «Paulinho das feiras», junto ao pavilhão Portugal, da Expo…

    [5] Existe aqui uma excepção: os livros publicados pela Comissão para o Estudo das Campanhas Ultramarinas (CECA), tutelada pelo Exército, têm sido um bom contributo. Mas, ó ironias do destino, nem os conseguem comercializar!

    [6] Já repararam certamente e por exemplo, que quando há queimas das fitas ou até a bênção das mesmas, nas universidades, as televisões e demais OCS passam um caudal de noticias, onde por vezes só aparece desbunda, bebedeiras, praxes obscenas e outro folclore académico. Pergunto: qual dos leitores se lembra da última vez que viu/ouviu/leu, uma notícia sobre um Juramento de Bandeira?

    [7] Dado que a única coisa que fizeram, foi o de serem ministros para as FA!