BLOGUE DA ALA DOS ANTIGOS COMBATENTES DA MILÍCIA DE SÃO MIGUEL

terça-feira, 2 de agosto de 2016


Uma operação em território do Zaire


MEMÓRIAS DE UM CAPITÃO


João Sena

A PIDE tinha um prisioneiro que sabia onde era, exactamente, o quartel mais forte e com mais guerrilheiros do MPLA. Situava-se na margem esquerda do Luena, próximo da picada internacional que ligava o Zaire a Angola.

Para se poder atacar este objectivo tínhamos disponíveis, apenas um grupo de combate de 18 militares. Teríamos de atravessar a «chana» que estava completamente alagada, com a ajuda de uma «zorra» do CFB, que estava no LUACANO para pequenos trabalhos na linha mas não se podia perder aquela oportunidade.

As coordenadas do objectivo foram enviadas ao BCAV1883 e à ZIL, uma vez que se situava já em território do Zaire.


Obtida a autorização da ZIL, ao fim da tarde, partimos até a um determinado quilómetro da linha, o mais próximo possivel do objectivo, onde fomos largadas cinco equipas comandadas por mim, pelo Alferes BARREIRA e Alferes CRUZ.

Imediatamente ficámos alagados até à cintura.

Assim tivemos de andar durante a noite, quase vinte e tal quilómetros, até encontrar a antiga picada.

Por indicação do prisioneiro andámos mais uns quilómetros na picada.

Eram três da manhã quando encontrámos o Kimbo encostado à antiga picada internacional.

Numa das suas extremidades havia um grande «parrot» onde, com a luminosidade das brasas, quase apagadas, dormiam os guerrilheiros.

Pretendia-se fazer o golpe de mão ao nascer do dia mas os soldados, com o frio e o ter estar atentos e sem se mexer, começaram a tossir.

Temendo-se que a surpresa fosse quebrada e com a certeza de não estarmos a atacar a população, fizemos fogo sobre os vultos que, imediatamente, responderam com tiros de rajada e saltaram, como gatos, sobre os soldados.

A confusão na noite foi tremenda.

Tiros por todo o lado, com gente a fugir estremunhada em todas as direcções.

As armas do IN foram recolhidas pela PIDE dizendo que depois as entregariam o que nunca veio a acontecer.

Do corpo a corpo sangrento, (a operação mais violenta da guerra que só pode dar testemunho quem a viveu), foram mortos uns quantos IN e feridos dois soldados das NT.

O soldado SILVESTRE LANITA CANDEIAS (CRUZ DE GUERRA de 4.ª Classe) tinha na cara um grande rasgão feito por uma baioneta de Kalash, e o soldado «Madeira», ERNESTO FERNANDES BAETA (CRUZ DE GUERRA de 4.ª Classe), ainda com a sua MG em brasa, tinha um largo golpe no pescoço mas que embora profundo, pouco sangrava.

O regresso foi muito mais difícil.

Tivemos de improvisar uma maca para transportar o CANDEIAS que, não obstante os esforços do maqueiro, CONSTANTINO TEIXEIRA, não parava de sangrar; eram ligaduras sobre ligaduras e ainda teve de ser feita uma transfusão de sangue, de veia a veia, mais o ter de caminhar com água pela cintura, a juntar as emoções e o cansaço já dispendido, tornaram a caminhada muitíssimo mais difícil.

Só por volta das dez da manhã chegámos à linha de onde podemos pedir as evacuações dos feridos e água para beber.

Por via rádio dissemos o quilómetro onde nos encontrávamos e passado um tempo regressámos ao LUACANO.

O CANDEIAS e o «MADEIRA» foram imediatamente evacuados por um avião DO-27, pilotado pelo Cap.PilAV. CARLOS ACABADO, para a enfermaria do LUSO.

Nas operações nas águas da «chana» alagada andávamos só com as botas calçadas, ou seja, sem meias; e lá tive de andar mais de três semanas com os pés negros tingidos pelas botas.

Reconfortante foi o rádio enviado pelo Brigadeiro MACHADO DE SOUSA (RIP), o célebre «MARAVILHAS», professor na AM durante muitos anos.

O pior foi meses mais tarde ter de responder por inquérito, sobre o incidente diplomático com a ameaça de uma valente «porrada» que o Governo português me queria enviar.

Era absolutamente proibido entrar em território do Zaire.





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