BLOGUE DA ALA DOS ANTIGOS COMBATENTES DA MILÍCIA DE SÃO MIGUEL

domingo, 17 de abril de 2016


A heróica resistência de Mucaba

— Evocação 55 anos depois


João José Brandão Ferreira, Oficial Piloto Aviador

17 de Abril de 2016 (mas escrito faz muito tempo).


Civil António: «Meu Capitão, 6.500 negros são muito negros…»
Paiva Couceiro: «Mas 275 portugueses também são muitos portugueses».
Diálogo ocorrido durante o combate de Magul, 1895.

A chamada luta pela independência de Angola a que nós melhor chamaremos (e reservamo-nos o direito de o fazer…), de acções de terrorismo interno movido e apoiado por forças vindas de fora, teve início em Angola, no desgraçado dia 15 de Março de 1961, tendo sido precedido por acções violentas por parte de forças alegadamente ligadas ao MPLA, no dia 4 de Fevereiro, contra uma prisão e uma esquadra da PSP na cidade de Luanda.

Estes acontecimentos foram precedidos e enquadrados por várias ocorrências a nível nacional e internacional dos quais darei uma pequena síntese a fim de melhor enquadrar o evento ora evocado.

1961, foi um ano em que a guerra Fria atingiu um dos seus maiores picos que culminou na crise dos mísseis em Cuba.

Os «ventos» da descolonização inseriam-se na lógica dessa guerra Fria, dando expressão prática à célebre frase de Lenine de que o caminho para Londres e Paris passava por África.

A questão da denominada autodeterminação dos povos foi posta em movimento uniformemente acelerado após a conferência de Bandung em 1955, em que nascia o movimento dos não-alinhados, encabeçados por Tito, Nehru e Nasser, que pretendia juntar os países do chamado «Terceiro Mundo», numa via independente das superpotências mas que, na prática, passou a fazer objectivamente o jogo da União Soviética. O objectivo imediato era a expulsão do homem branco, dos continentes africano e asiático e o enfraquecimento das potências europeias, que retiraram em debandada de marcha.

Neste objectivo confluíram os EUA, por razões distintas (pretendiam urgentemente subtrair os novos governos à influência comunista, garantir matérias-primas e ao mesmo tempo diminuir o poder dos europeus, seus concorrentes no mercado capitalista).

No fundo todos se estavam borrifando para os direitos humanos, a liberdade dos povos e o bem-estar das populações. Tratava-se apenas de substituir soberanias, garantir apoios estratégicos e cativar mercados.

Isto é, um verdadeiro neocolonialismo «a la letre».

O acesso de um magote de pseudo-estados à ONU, sobretudo a partir de 1960, fez perder a maioria da Assembleia Geral, ao bloco Ocidental enquanto a Rússia e a China mantinham o Conselho de Segurança refém do seu veto político.

De tudo isto se apercebeu com clarividência o Governo português de então, e com a coragem própria dos grandes momentos da História de Portugal, dispôs-se a resistir a este vendaval de subversão política e da mais infame hipocrisia internacional.

Por isso os Portugueses sofreram o maior ataque político, diplomático, económico e militar à escala mundial, como já não se via desde o domínio filipino.

O ataque começou na Índia a partir de 1947 e foi contido vitoriosamente, deve dizer-se, durante mais de 10 anos, tendo culminado com a invasão brutal, em 18 de Dezembro de 1961; a violência em Angola teve início nesse mesmo ano, estendeu-se a S. João Baptista de Ajudá, ocupada pelo Daomé em 1 de Agosto de 1961, por «constituir um perigo para a paz mundial» (sic!); acercou-se da Guiné em 1963 e de Moçambique no ano seguinte e culminou com o golpe de estado em Lisboa, em 25 de Abril de 1974 e com o que se lhe seguiu.

Na altura e como é hábito entre nós, parte da elite política e intelectual, aterrorizou-se com as ameaças existentes e em vez de se reunir à volta do interesse nacional e cerrar fileiras em torno da coesão popular, cindiu-se e passou a defender ideias desvairadas.

O ministro da Defesa, Botelho Moniz magoado com o chefe do Governo desde os tempos em que tinha sido dispensado de ser ministro do Interior, no fim dos anos 40, amedrontado com a missão ciclópica que tinha que tentar cumprir e mancomunado com a administração americana, que prometia muitos dólares (enfim, na tradição arrogante dos novos ricos, que já tinha comprado o Louisiana aos franceses, o Alasca à Rússia, algumas terras ao México, outras aos índios e tentaram comprar a Florida e Cuba aos espanhóis, para só citar estas), tentou fazer um golpe de Estado palaciano e falhou. Foi a «Abrilada».

Um ex-candidato a Presidente da República e um ex-candidato a Governador de Angola, ambos ex-próceres animosos, do Estado Novo conspiraram nacional e internacionalmente, contra o seu governo e chegaram ao ponto de fomentar e liderar um desvio de um avião da TAP e do paquete Sta. Maria, iniciando assim, salvo melhor opinião, a pirataria e o terrorismo moderno.

Tudo isto aparentava pelos «timings» e objectivos, estar conjugado com o início do terrorismo em Angola (que teve o apoio americano).

A oposição comunista, que falava em «patriotismo» e «democracia» em cada discurso (e ainda hoje fala), tentou uma revolta com o ataque ao quartel de Beja em Janeiro de 1962. Tudo falhou e as coisas serenaram.

A verdade é que a esmagadora maioria do povo português sentia o Ultramar como seu e cerrou fileiras na sua defesa, tendo os batalhões seguido «estranhamente» completos e em boa ordem de marcha, até ao fim da guerra, isto é, em Abril de 1974.

Deste modo foi possível defender Angola com sucesso. Os portugueses não eram belgas, nem franceses, nem ingleses; nem mercenários, tão pouco os perigosos colonialistas que muitos acusavam. Não se atemorizaram e ficaram com as armas numa mão e a charrua na outra. Foi isso aliás, que lhes tinham ensinado a fazer desde os tempos do Condado Portucalense, há mais de 800 anos. Maneira de estar na vida que, pelos vistos, se esfumou, nas últimas quatro décadas.
*****

Mucaba foi um farol e um marco na resistência dos portugueses naquela época difícil, mas heróica, e que emocionou a Nação.

Mucaba era um pequeno posto administrativo cujo chefe era o intendente Hermínio Sena, perto da serra do mesmo nome, nos limites dos concelhos da Damba e do Bembe e distava 45 km de Carmona.

A zona era propícia à plantação de café e a safra desse ano anunciava-se promissora.

Desde 16 de Abril desse ano de 1961, que bandos de revoltosos a cercaram isolando as cerca de três dezenas de habitantes que nela ficaram.

Este isolamento tornou-se total, com a avaria do pequeno emissor P-19 de que dispunham. No resto da província, nada se sabia, pois, do que lá se passava. Os moradores entrincheiraram-se na pequena capela, como que a invocar a protecção divina – uma outra tradição antiga das lusas gentes – e não será figura de retórica afirmar, que lhes sobrava em valentia e determinação o que lhes escasseava em meios de defesa.

No dia 20 romperam as hostilidades com um ataque a um grupo de defensores que se afastara, estrada fora, em busca de notícias e que teve que lutar bravamente para se salvar. Nesse dia a Força Aérea conseguiu destruir um emissor P-21 do inimigo, assinalado na mata do Feitiço.

No dia 25, uma coluna de civis e militares vinda do Negaje, destroçando toda a resistência encontrada e reparando 24 pontes destruídas pela guerrilha, alcançaram Mucaba, tendo trazido além do conforto moral da sua presença, algum armamento, munições, víveres e medicamentos. A coluna, cumprida a sua missão, volveu à sua base e Mucaba regressou ao seu isolamento.

A 29, uma avioneta pilotada pelo engenheiro Pereira Caldas, avistou a 5 km de Mucaba, vários grupos de rebeldes que se dirigiam à povoação. De imediato lançou uma garrafa com uma mensagem de aviso, sobre uma das ruas e ainda foi disparar uns tiros de pistola sobre a horda de invasores.

A população preparou-se para o pior e para melhor avaliar a situação saíram duas carrinhas, a primeira das quais caiu numa cilada tendo morrido os seus seis ocupantes, tendo a restante escapado milagrosamente, graças ao sangue frio do condutor que retirou em marcha atrás.

O piloto alertou ainda as autoridades civis e militares e a população de Carmona, que se juntou pelas 23 horas na Praça do Concelho, voluntariando-se para ir em socorro de Mucaba. A multidão, de início exaltada, só dispersou depois de se assegurar que as autoridades iam enviar auxílio e depois de cantar o Hino Nacional.

De facto uma coluna militar com duas secções de paraquedistas e duas secções de tropas indígenas, comandada pelo tenente Mansilha partiu do Negaje (a 130 km de Mucaba) às 00h00 do dia 30, só tendo chegado à povoação, pelas 15h00, após esta ter sido libertada, tendo sofrido ataques e ter que ultrapassar numerosos obstáculos.

Nesse mesmo dia 29 pelas 17h30, teve lugar o primeiro ataque, ao som de cânticos guerreiros e em vagas sucessivas. O fogo certeiro dos defensores causou avultadas baixas nos atacantes, calculados em cerca de 2 000 e que continuaram as suas investidas durante toda a noite.

Às 22h00, com as ruas iluminadas para melhor proceder à defesa o chefe Sena, cabo-verdiano de origem (e que é bem a prova do universalismo lusíada), agarrado ao P-19, entretanto reparado, lançava para o ar o seu apelo angustioso: «As nossas munições estão escasseando! Mandem-nos aviação pelo amor de Deus».

De facto, de Luanda e do Negaje, partiram vários aviões que sobrevoaram constantemente a povoação, mas nada podiam fazer devido ao denso nevoeiro.

No seu emissor, o chefe Sena ia dizendo a toda a Angola angustiada: «Estamos a morrer, não temos munições, receamos chacina total».

Durante toda a noite a Força Aérea Portuguesa manteve-se à vertical de Mucaba, apesar do mau tempo, para lhes manter o moral.

De Santo António do Zaire, pedem à gente de Mucaba que se aguente até a Força Aérea poder actuar, mas às 03h00 da madrugada o P-19 anunciava, «O inimigo atira pela porta da capela paroquial. Salvem-nos. Morremos portugueses!». Depois o silêncio.

Em toda a província receava-se o pior, até que às 05h00 da manhã, o emissor de Mucaba fez-se ouvir de novo para dizer: «Estamos inermes, só nos resta combater à baioneta».

Os assaltantes, vendo diminuir a resistência e sentido a vitória segura entregaram-se a estranhas libações e foram amontoando bidons de gasolina à volta da capela, para «a churrascada» dos brancos.

Ao amanhecer, os malvados agruparam-se para o ataque derradeiro. Mas voando baixo surpreendendo-os, aproxima-se um pequeno DO-27 pilotado pelo capitão Mascarenhas que intenta e consegue, a proeza de aterrar na rua que conduz à capela e desembarcar algumas munições, o furriel Reis e um cabo cipaio que orientaram a defesa. Eram 06h10.

Refeitos da surpresa os bandoleiros acorrem ao local e o piloto só tem tempo de meter motor e deslocar contra a chusma atacante.

É nesse momento que entra em acção o PV2 do então tenente-coronel Diogo Neto, comandante do Grupo Operacional da Base Aérea 9, de Luanda, que despeja sobre a turba homicida o conteúdo das suas cinco metralhadoras e as últimas bombas disponíveis em «stock»!

Logo de seguida apareceu o T-6 do Aeródromo – Base do Negaje, pilotado pelo tenente Negrão.

Eis as suas impressões após ter aterrado: «No largo dezenas de manchas negras juncavam o chão vermelho; ninguém se mexia.

Depois os valentes de Mucaba, destelharam uma das águas da capela, fizeram sinais, saíram para o largo e vieram até à pista improvisada.

Quando aterrámos, um cheiro tremendo veio até nós. Fomos à Igreja. Desviámo-nos dos cadáveres. A imagem visual que eu tinha construído no ar estava bem incompleta. As feridas enormes, as mutilações, as verdadeiras dimensões do quadro, a justa proporção da verdadeira tragédia. Não havia feridos. Um menino preto aleijado, dois homens esgotados, fizeram-nos companhia no regresso».

As «asas de Cristo» libertaram Mucaba do seu patético pesadelo de 13 horas de inenarráveis momentos de angústia e exaltação pátria. O governador-geral de Angola, Dr. Silva Tavares, enviou uma mensagem aos 30 heróis de Mucaba, que dizia: «acabais de praticar um dos maiores feitos da nossa História; Angola inteira recordará os heróis civis e militares de Mucaba e venerará a memória dos que tombaram no campo da honra. Viva Portugal».

Por mim encontro nos defensores de Mucaba os herdeiros da guarnição da fortaleza de Massangano, cujo capitão-mor D. Pedro de Menezes exortava os seus homens no mais acesso do ataque holandês durante a guerra da Restauração dizendo: «as praças de el-rei D. João IV, nosso senhor, não se rendem senão depois de todos mortos».

Este é o espírito que devíamos restaurar e que tanta falta nos faz hoje em dia.

Resistência de Mucaba

Sobreviventes no exterior da capela

Enfermeiro Vicente Muanza
Agente sanitário Martins
Amanuense Miguel António
Cozinheiro Viegas
Ajudante de cozinha Eduardo
Carpinteiro Joaquim dos Santos
Cipaio Paulo Camuanda

Sobreviventes no interior da capela

Abel Arlindo Vicente
Abílio Dias
Adelino Afonso
Luís Alexandrino
António Nunes Madeiros
António dos Santos
António Serafim Brás
Domingos José Brás
Eduardo Teixeira
Hermínio Carvalho de Sena
João Madeira Jerónimo
Joaquim Dias
Joaquim Silvestre
Jorge de Oliveira
José Dias Duque
José Nunes Jerónimo
José Melo Morais
Manuel António Farinha
Manuel de Oliveira
Silvino Alves
Teófilo de Almeida

Mortos

Cabo de cipaios Sebastião Malunjo
António Aurélio
António da Costa Fernandes
Luís Ribeiro
Esposa do carpinteiro Joaquim dos Santos
E sua filha de três anos
Eugénio dos Santos Veríssimo
Cláudio de Almeida
Joaquim da Silva Ramos
José Alves Moreira
José Baptista


Fonte: «Mucaba» – uma certidão narrativa do coronel Augusto Soares de Moura
(edição do autor) 2001.





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